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Beggo sempre Beggo

Indaiatuba, por Kleber Patricio

beggo

Crédito das fotos: Tiago Carvalho.

Eu ainda morava em Santos naquela noite quente no final de 1985, quando meu amigo Ricardo Gonçalves Silva me convidou para jantar em sua casa para receber uns amigos que ele havia conhecido de Indaiatuba. Eu conhecia a cidade apenas de nome – o suficiente para saber que não era praia – e minha imaginação me levou a crer que iria encontrar pessoas tranquilas, talvez um pouco tímidas. Pobre imaginação, que não poderia ter errado mais: naquela noite inesquecível, de tão divertida, conheci as primeiras pessoas desta que viria a ser a minha cidade e essas pessoas eram ninguém menos que Carlos Roberto Beggo e Dione Tachinardi Sordilli, duas pessoas de opiniões fortes e, muitas vezes, deliciosamente (ainda que nem sempre) polêmicas.

Desde então, algo na personalidade do Beggo, na forma como ele administrava o convívio social sem abrir mão da defesa de conceitos tão fortes, me intrigava. Somente no ano passado, num momento de reflexão, em que me perguntava o porquê de às vezes ceder mais do que o necessário, de fazer mais do que as pessoas esperavam, isso me veio em palavras: é óbvio que, ao não abrir mão de suas opiniões fortes em nome do bom mocismo, isso sempre refletiu uma absoluta falta de necessidade de aceitação – necessidade que percebo na imensa maioria das pessoas à minha volta. E me veio uma vontade de entrevistar o Beggo, de conversar com ele a respeito e saber como ele lida com isso. Conhecendo um ao outro há tanto tempo, seria inevitável que a entrevista ocorresse num agradável e divertido clima de bate papo muito informal, bate papo que transcrevo a seguir, acompanhado de fotos que ilustram, para quem conhece bem o entrevistado, sua admiração (ou devoção) ao recém-falecido ídolo do rock/pop David Bowie. Quanto ao título, é o mesmo de uma coluna que Beggo assinou por anos no jornal Tribuna de Indaiá.

Beggo, por que vocês resolveram… – ou melhor, me conte a história da primeira Caminhada contra os Maus Tratos aos Animais de Rua.

A primeira caminhada aconteceu no Brasil inteiro, por conta daquela história daquele yorkshire que devia latir muito, não sei, mas que a dona foi filmada pela vizinha espancando o animal, um animalzinho de um quilo, que veio a falecer. Isso virou uma comoção nacional e aí a Luisa Mel, uma celebridade que defende a causa animal, resolveu fazer isso no Brasil inteiro. Aí, uma amiga minha – quer dizer, ela veio a se tornar minha amiga –, a Franciela Luque, inscreveu Indaiatuba naquele janeiro de 2012, acho. Ela veio falar comigo porque sabia que eu havia sido uma das pessoas que ajudaram a Aprai (Associação Protetora dos Animais de Rua de Indaiatuba) no começo, que era contra os maus tratos aos animais; enfim, me mandaram ela. E eu falei “Não, estamos juntos”, mas a idealizadora é a Franciele. Ela veio acho que por eu seu conhecido e a gente acabou se juntando, virou uma dupla. Nós somos cidadãos, entendeu, e a caminhada é independente; é feita por mim e por ela – claro que com o apoio da população – e está crescendo a cada ano. Então foi dessa forma que começou.

Eu sempre soube do seu amor pelos animais – inclusive me lembro muito daquela sua pastora loira, como era mesmo o nome dela, Diana, né? Mas eu gostaria de saber qual foi o estopim dessa dedicação em tempo integral, o porquê desse quase sacerdócio dali em diante? Por quê dali para a frente você resolveu sair a campo e desde então e se envolver em tudo o que se relacione com a causa animal?

Bom, primeiro que é assim, né: eu já nasci pronto (risos). Eu tenho uns trocadilhos – falo que não quero passar a vida em branco, essa história de ser celebridade de bairro, eu brinco sempre com o Sandro Carotti a respeito do fato de sermos muito conhecidos, mas sem esquecer de que Indaiatuba ainda é uma cidade pequena –, mas a gente é assim: o prego fora da caixa; o primeiro que vai levar a martelada sempre. Mas eu já passei por muitas coisas, entendeu, Kleber, eu muito cedo fui pro Colégio Anchieta, que era um colégio jesuíta, um colégio de padres e fui expulso. Eu não cabia naquela formação católica jesuíta, mas dos nove aos treze – ali se formou minha personalidade (eu já fiz isso em terapia). É regra, eu sou uma pessoa cheia de regras para comigo mesmo e sou meio de ter a rédea próxima e curta; eu acho que é o que falta a muita gente. A minha forma de ser não é a melhor, mas, assim, desde sempre tive disciplina: depois que voltei do colégio de padres fui obrigado pelo meu pai a fazer o Senai – eu sou ferramenteiro formado, trabalhei na Yanmar –, mas resolvi trocar a graxa pelo gel e fui fazer curso de cabeleireiro escondido, porque o universo era muito machista. Então, eu tenho essas questões que acho que ilustram bem a minha trajetória, por mais simplista que possa parecer. E nesse tempo todo eu estive envolvido com essas questões; trabalhei em jornal (fiz social a convite da Aydil), fiz de quase de tudo, um pouco e isso acabou me tornando uma pessoa conhecida. Então essas questões sociais, com as quais eu sempre me envolvi, por exemplo: tenho um amigo que é dono de uma loja na cidade e fizemos juntos acho que nove desfiles (numa boate aqui da cidade, a Zoff), todos foram beneficentes para a FEAI (Federação das Entidades Assistenciais de Indaiatuba). Numa quinta-feira, que ninguém saía de casa, a gente conseguia lotar aquilo.

_MG_1585Eu acho que uma das coisas que nós brasileiros temos de melhor é isso: estender a mão. Pra qualquer causa – uma causa que tenha alicerce, que você saiba que o dinheiro está sendo bem utilizado, que tenha pessoas honestas, de caráter. Porque o que vemos nos moldes do Brasil de hoje em dia não é um holograma: muita coisa é desviada, às vezes, tudo. Mas como você vive numa cidade menor – como sempre brinco: nasci aqui, vivo aqui e vou morrer aqui (não vou fugir, como muita gente acaba fazendo), você tem que dar retorno pra sociedade. Se sei de uma caminhada que vai haver em benefício de uma causa interessante, uma junção de pessoas em torno de uma causa e que vai ajudar – porque tudo isso que a gente faz é obrigação de um governo, mas o governo não dá conta ou não quer dar conta e sobra pra nós –, eu vou. Nós, cidadãos, povo, eleitor, a gente vai até a beira do rio, bate a roupa e lava aquilo que precisa alvejar, que eles não fizeram e que é o papel deles – e eu sou meio Talibã em relação a isso; eu acho que tudo é o governo que tem que dar: saúde pra gente, pra animal, educação pra todo mundo, tudo isso, mas a gente quer o Brasil lindo, o Brasil que tem uma costa enorme, um povo bonito, um povo inteligente, na medida do possível (porque ele tem que se virar; o brasileiro hoje não tem só plano B, tem o plano C, D, E etc. e ele acaba se virando, com dente na boca ou não), mas quem nos representa só nos usa como trampolim, como escada, e sobra pra gente. Eu não me importo de ajudar a fazer isso e mobilizar, de repente.

O que eu queria que você falasse um pouco pra mim é de onde vem essa coragem. Porque, paradoxalmente, você demonstra essa coragem de atitude, mas é meio molenga – tem medo de montanha russa, desconfia de tudo o que não conhece –, ou seja, de onde vem essa coragem e disposição para a polêmica, já que tem muita gente que concorda veementemente com você, mas tem outro contingente que discorda de você com a mesma veemência, ou seja, você não está preocupado se gostam ou não de você.

Olha, eu acho que eu fui bem nascido. Independente de orientação sexual, independente de qualquer coisa, minha família é igual arroz de japonês: todo mundo junto – todo mundo junto pra brigar, todo mundo junto pra se amar. Família: papai, mamãe, irmão, galinha. Então eu acho que tem tudo isso. E eu venho de uma geração, Kleber, que é assim: ou eu batia ou eu apanhava (por uma questão sexual). Eu preferi bater. Não nasci para apanhar, né? Então eu tenho outro trocadilho: eu tenho o doce e a chibata. Ah, eu quero a chibata! Imagine se eu vou dar o dorso. Entendeu? Porque eu acho que são dois tipos de seres humanos: o que nasceu pra se ajoelhar – não que eu nunca tenha me ajoelhado; sim, mas sempre busquei ficar ereto o mais rápido possível. A gente norteia a nossa vida. Então é assim: ao mesmo tempo em que eu sou medroso pra um monte de coisas – eu tenho medo de avião, jamais você vai me ver descendo de paraquedas de algum lugar (se me ver saltando de um avião, saiba, foi sequestro e eu fui jogado com um paraquedas que não vai abrir), eu não tenho medo de dar o primeiro passo em alguma coisa que eu julgue, no meu interior, estar certo. Isso não quer dizer que nunca tenha cometido equívocos. Antigamente, eu não olhava para trás e nem pegava a vassoura e a pazinha pra recolher, mas hoje não. Estou amadurecendo, hoje eu sei voltar atrás e me desculpar. Eu ando com uma vassourinha e uma pazinha para recolher os detritos que tenham resultado de mim, coisa que muita gente não faz – deixa atrás de si um rastro de dejetos e não recolhe. Então, eu sei voltar e me desculpar se eu peguei muito firme, porque eu tenho uma verborragia que, dependendo do meu temperamento espanhol, a pessoa tem que ser boa, porque eu tenho uma argumentação muito forte e vai só na chibatada de palavras, entendeu? Então isso que me faz ser amado e odiado e na verdade eu não penso muito nisso; eu não fico pensando se eu sou mais amado ou odiado – isso pra mim é indiferente. Porque eu sei de mim, entendeu? Eu sei das minhas causas, de todos os tropeços, dos fundos de poços onde eu fiquei horas sentado (ainda bem que eles tinham fundo), finais de relacionamento – eu sei tudo o que eu passei. Tudo isso naqueles momentos era muito doloroso, mas isso tudo acabou criando em mim uma expectativa de fortalecimento. Então eu acho que essa coisa de coragem tem a ver com meus alicerces familiares. Essa minha ascendência espanhola também deve contar – porque se o rosto ficar vermelho, saia de perto. Mas é isso: é fazer a diferença, né, não passar a vida em preto e branco. Eu brinco sempre que se for colocar meu nome numa rua depois que eu morrer, se for sem saída, nem pensar; eu quero nome de avenida, igual à 9 de Julio, em Buenos Aires, nove pistas pra lá e pra cá. 

_MG_1596Eu sou síndico do meu condomínio há sete anos. No primeiro ano, eu li o Regimento Interno inteirinho – e fiz valer. Regra é regra. Então falam lá que só falta eu implantar toque de recolher às dez da noite e hastear a bandeira e cantar o Hino Nacional de manhã. Acho que as regras são essenciais para o convívio humano e o Brasil está meio à deriva por conta de não se fazerem cumprir as regras de cima para baixo. Eles não sabem o que é regra – querem que nós cumpramos as regras, mas eles não cumprem. Estão quebrados os elos dessa corrente.

Então, lá no condomínio este ano teve reeleição. Eu não queria participar, mas uma avalanche de gente me pediu que continuasse. Teve até quem me dissesse: “Olha eu não gosto da sua abordagem, não gosto da sua grosseria, mas o seu trabalho à frente do condomínio só o valorizou”. Eu ainda brinquei na assembleia, dizendo que não é que o voto dos demais valha menos, mas esse voto me vale muito. Porque é assim que tem que ser, tem que saber separar as coisas. Aqui no Brasil a gente não gosta das pessoas de forma gratuita. Hoje sou uma pessoa que busca reconhecer o talento. Penso assim: não sento para dividir uma pizza com esta pessoa, mas é uma pessoa que vou indicar, porque ela é boa no que faz. E assim: eliminar a hipocrisia. Tenho tentado muito não ser mais hipócrita. Ainda há vestígios dela em mim? Sim. Cometo erros? Cometo. Sou mais virtude que defeito? Não sei ainda. Não sei. Um dia vou saber e para mim vai ser importante. Mas o que as pessoas pensam de mim, realmente não estou ligando muito, não.

Uma última pergunta: várias instituições que ajudo estão utilizando as caminhadas como forma de apoiar uma causa e em algumas reuniões seu nome é mencionado (“Vamos pedir ajuda pro Beggo?”), até por iniciativa minha. A Volacc até já te pediu, né? Posso fazer isso? Posso te chamar para outras caminhadas?

Pode sim, claro. A causa sendo boa, estou dentro. Apoio a caminhada da Volacc e desde 2013 cometo assédio com que manda pedindo um terreno para a instituição e também para a UPAR. Há pouco mais de um mês os processos estão em andamento. Fiquei feliz, pois ambos são nichos extremamente pertinentes e importantes para a nossa sociedade. Agora já estou correndo pelo Rotary, que tenho certeza que sairá também.