Neste ano, os incêndios na Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e, principalmente, no Pantanal, aumentaram de forma significativa, colocando em alto risco a biodiversidade. Na luta pela conservação, médicos-veterinários voluntários se dedicaram a resgatar animais, mesmo em situações caóticas. Para estes profissionais, cada vida importa. “Salvar alguns em meio a um grande desastre pode fazer toda a diferença para que populações de espécies possam se restabelecer”, frisa a médica-veterinária Luciana Guimarães Santana, integrante do Grupo de Resgate de Animais em Desastres (Grad), que participou de ações no Pantanal. “É desesperador ver o fogo avançando e os animais encurralados.”
Luciana comenta sobre ocasiões em que os animais simplesmente se entregaram quando encontrados, a exemplo de um filhote de macaco prego. “Ele mal resistiu à captura e, no carro, dormiu facilmente no meu colo, enquanto recebia a medicação”, conta a profissional, emocionada. O animal teve a pata necrosada devido à gravidade das queimaduras e ao tempo que permaneceu sem assistência até ser encontrado. A amputação foi inevitável.
Resgatados seguem em tratamento
Assim como o Grad, equipes de outras organizações atuaram em resgates no Pantanal, como a Ampara Silvestre e o Reproduction 4 Conservation (Reprocon), que, além dos resgates, monitorou e documentou 30 onças pintadas que não precisaram de intervenções.
Dentre os casos mais dramáticos, dois chegaram ao Instituto No Extinction (NEX), em Goiás. Um deles foi o da onça batizada de Amanaci, que foi notícia internacionalmente, pela gravidade das queimaduras nas patas. “Eram feridas chocantes, provocadas por queimaduras de terceiro grau, com exposição óssea e de tendões. O animal chegou em um estado inacreditável”, disse o médico-veterinário Thiago Luczinski, responsável técnico pelo NEX.
Amanaci está em tratamento com células tronco e apresenta melhora considerável. “A reconstrução dos tecidos tem sido célere. Embora ainda sejam graves, as feridas já apresentam aspecto bem melhor”, conta Luczinski, sobre a onça que, após a recuperação, terá seu local de destino decidido por órgãos oficiais.
Cenário desafiador
Os voluntários atuam, também, nos bastidores dos resgates, com documentações e contatos para viabilizar doações e parcerias. Outra vertente do trabalho é a instalação de cochos com água e alimentos em pontos estratégicos para animais sobreviventes. Entre os entraves enfrentados, o médico-veterinário Pedro Nacib Jorge-Neto, que faz parte o Reprocon e também esteve no Pantanal, menciona dificuldade de acesso e de comunicação, além do desgaste físico dos profissionais, pelas altas temperaturas, fumaça e ar seco.
Outro ponto desafiador apontado por Jorge-Neto foi a burocracia para a locomoção de animais e para ações mais efetivas. “Para a dimensão do problema, eram irrisórios os recursos de força pública que vimos serem empenhados. O sentimento é de frustração.”
Luciana compartilha da visão de Jorge-Neto. “Ao contrário das situações de Mariana e Brumadinho, em que empresas eram responsáveis por providenciar recursos e estruturas, no Pantanal não havia este apoio”, diz a profissional, fazendo um comparativo com sua experiência quando houve o rompimento das barragens em Minas Gerais.
Perdas sem precedentes
Sobre a perda de habitat, Caio Filipe da Motta Lima, membro da Comissão Técnica de Médicos-veterinários de Animais Selvagens do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo (CRMV-SP), enfatiza que, se parte da vegetação apresentará resiliência em alguns meses, outra parcela não voltará à mesma diversidade. “O impacto é a ausência de alimentos e abrigo às espécies, além de conflitos por competição pelos territórios escassos, fatores que aumentam as chances de mortalidade”, comenta Lima. Segundo o profissional, estas interferências serão observadas nos próximos anos em áreas atingidas por incêndios.
Presidente da Comissão Técnica de Saúde Ambiental do CRMV-SP, Elma Pereira dos Santos Polegato diz que “a perda é imensurável, com comprometimento genético de espécies que podem ser dizimadas”. Isso porque o fogo avança e afeta, inclusive, corredores ecológicos que ligam os biomas Pantanal, Cerrado e Mata Atlântica. “Os animais ficam sem saída”, enfatiza Elma, sobre o que Lima comenta como “efeito cascata” de perda da biodiversidade. “Os danos não se limitam às áreas queimadas. Até os peixes de bacias hidrográficas a quilômetros de distância serão afetados pelos desequilíbrios na cadeia alimentar”, diz o médico-veterinário, sobre a extensão do problema.
Nesta conta de tantas subtrações, as populações ribeirinhas e indígenas estão entre as vítimas, uma vez que ficam sem recursos naturais, além de terem suas culturas afetadas.
Estruturação de ações é urgente
Elma e Lima ressaltam a necessidade de ações preventivas e de recuperação mais enfáticas. “É preciso quebrar a barreira de impasses políticos e investir, efetivamente, em medidas de preservação, com valorização da ciência e equilíbrio de valores e culturas humanas em relação à conservação”, frisa Lima.
Segundo Elma, a degradação de ecossistemas reduzem a oferta de serviços de apoio à vida, o que, em muitos casos, leva a consequências negativas sobre a saúde e o bem-estar de humanos e animais. “Até o risco de doenças infecciosas é um reflexo deste cenário”. A médica-veterinária lembra que ecossistemas, bem como as atividades de produção de alimentos, dependem de uma série de organismos: produtores primários, herbívoros, carnívoros, decompositores, polinizadores, patógenos, inimigos naturais das pragas.
Redução de habitat em números
Elma ressalta que o Brasil liderou a agenda ambiental global de 2004 a 2012, reduzindo em 80% o desmatamento neste período. Isso ocorreu com demarcação de territórios, melhoria na capacidade de implementação da legislação, fortalecimento dos órgãos ambientais e, sobretudo, uma mensagem de combate ao desmatamento. “Entretanto, observa-se a perda destas conquistas.”
Para se ter uma ideia, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de janeiro até 3 de outubro, o equivalente a 26% do Pantanal foram destruídos pelo fogo.
A Amazônia teve 7,6 mil focos apenas em agosto, o maior registro para a época desde 1998, conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Em áreas verdes de São Paulo remanescentes da Mata Atlântica, as ocorrências de fogo foram de 2 mil, de janeiro a setembro do ano passado, para 4,2 mil, no mesmo período deste ano, segundo o Inpe. Os números representam alta de mais de 100% na incidência de incêndios florestais.
No Cerrado, também segundo o Inpe, houve redução na incidência de queimadas em relação aos anos anteriores. Ainda assim, apenas neste ano, foram 21,4 mil ocorrências registradas pelo órgão.