“A importância de Nara Leão na cultura brasileira não se restringe à música popular, muito menos ao específico da bossa nova, do samba de morro, do tropicalismo. Ela ajudou decisivamente a mudar o jeito da mulher brasileira, a libertá-la de preconceitos antigos, a dar-lhe um novo sentido e um novo modo de estar no mundo.” Cacá Diegues, cineasta
Nara Leão certamente foi uma das artistas mais importantes e influentes da cultura brasileira, não só pela sua obra, mas pelo que representou para a mulher e a sociedade como um todo. Filha caçula de Dr. Jairo e dona Tinoca e irmã da modelo e famosa personagem da cena carioca Danuza, a jovem tímida, quieta e cheia de neuroses ficou marcada na história como uma das mais produtivas intérpretes da MPB dos agitados anos 1960 aos 1980, além de ser responsável por definir os costumes e a expressão política da época. “Foi símbolo da reação à ditadura de 1964 sem nunca pretender ser coisa alguma”, escreveu Paulo Francis após a morte da cantora.
Em Ninguém pode com Nara Leão, que chega às lojas pela Editora Planeta, Tom Cardoso reconstrói a vida da artista que participou ativamente dos mais importantes movimentos musicais surgidos a partir da década de 1960, que, tratada como ‘café com leite’ pela patota que se reunia no apartamento da família em Copacabana, deixou a bossa nova para se juntar à turma politizada do CPC e do Cinema Novo e foi a primeira estrela da MPB a falar abertamente contra a ditadura militar.
Na biografia, que traz prefácio de Tárik de Souza, um dos mais respeitados críticos da MPB, Tom apresenta passagens da infância de Nara, marcadas pela angústia e reclusão, detalhes da inimizade com Elis Regina, dos famosos encontros no apartamento da Av. Atlântica, onde a bossa nova ganhou corpo, cara e nome, do relacionamento com Ronaldo Bôscoli, da amizade com figuras como Vinicius de Moraes, Roberto Menescal e Ferreira Gullar, por quem nutria admiração mútua e teve um affair. No livro, Tom relata que Nara inclusive chegou a sugerir que ele largasse a mulher e os filhos e viajasse com ela pelo Brasil.
À frente de seu tempo, Nara foi uma das primeiras adolescentes do Rio a fazer análise, por necessidade e curiosidade, e a obra Opinião de Nara, lançada sete meses após o Golpe de 1964, foi o primeiro trabalho de uma estrela da MPB a colocar o dedo no nariz da ditadura. Além disso, Nara foi a primeira do segmento a atacar diretamente o regime ao afirmar em entrevista ao Diário de Notícias que “o Exército não servia para nada” e que “podiam entender de canhão e metralhadora, mas não pescavam nada de política”.
O livro também acompanha o relacionamento de Nara com o cineasta Cacá Diegues, na época em que se aproximou do CPC e dos expoentes do Cinema Novo. Ele foi o responsável por apresentar a ela um outro mundo musical, fazendo-a se impressionar com artistas como Carmen Miranda, Ary Barroso e Luiz Gonzaga. Ela e Cacá se casaram em cerimônia íntima, recebendo convidados como Danuza e Samuel Wainer, Chico Buarque e Marieta Severo, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Aloysio de Oliveira e Flávio Rangel. Foi também com o cineasta que Nara se exilou na França e teve dois filhos, Isabel e Francisco.
Nara morreu por conta de um tumor no cérebro na manhã de quarta-feira do dia 7 de junho de 1989, aos 47 anos e deixou um legado que extrapolou o cenário musical na época em que viveu. “Amo Nara Leão. Nara e Narinha. Essa mulher sabe tudo do Brasil 1964. Essa mulher é a primeira mulher brasileira. Essa mulher não tem tempo a perder. Atenção: ninguém pode com Nara Leão”, escreveu Glauber Rocha em uma carta enviada a Cacá Diegues no período do exílio.
Por que ninguém podia com Nara Leão?
1 – A despeito do ar de desencanto e da quase displicência, Nara participou ativamente dos mais importantes movimentos musicais surgidos a partir da década de 1960 – e saiu de todos eles sem se despedir.
2 – Ela foi a primeira artista de sua geração a ridicularizar a passeata contra a guitarra elétrica, liderada por Elis Regina e Geraldo Vandré e endossada por Gilberto Gil.
3 – Filha de um advogado excêntrico, fez tudo que uma pré-adolescente de classe média alta carioca nos anos 1950 jamais sonhou fazer, como ir ao cinema, ao teatro e ter aulas de violão com um professor negro.
4 – Ela foi uma das primeiras adolescentes do Rio a fazer análise, por necessidade e curiosidade.
5 – Tratada como bibelô pelos machos alfas da bossa nova, deixou o movimento para se juntar à turma politizada do CPC e do Cinema Novo.
6 – No disco de estreia, recusou-se a pegar carona no sucesso da bossa nova e gravou um disco com sambas de Cartola, Zé Kéti e Nelson Cavaquinho.
7 – Apesar da decisão de dar um caráter mais político ao disco de estreia tendo como fio condutor um gênero que estava associado diretamente às massas, ela se recusou a gravar uma letra machista de Cartola.
8 – Lançado sete meses após o Golpe de 1964, Opinião de Nara foi o primeiro trabalho de uma estrela da MPB a colocar o dedo no nariz da ditadura. Sem rodeios, sem metáforas. Um disco-manifesto, inserido no contexto político-social e em sintonia com o que se ouvia nas favelas do Rio, marginalizadas e discriminadas pela política higienista do governador Carlos Lacerda.
9 – O demolidor segundo disco serviu de inspiração para um dos mais revolucionários espetáculos musicais da história do país: o Opinião.
10 – Foi ela, em pesquisa musical pelo Brasil, quem abriu as portas do Sudeste para os talentos do Teatro Vila Velha Caetano, Gil, Gal e Bethânia – essa última, com 17 anos, foi convocada para substituí-la no show Opinião.
11 – Foi a primeira estrela da MPB a falar abertamente e de forma mais contundente contra a ditadura militar, ao afirmar, em 1966, que o “Exército não servia para nada”.
12 – Ao ver nascer a expressão “Esquerda Narista”, ela, que sempre rejeitou ser porta-voz de qualquer coisa, decidiu gravar, só por provocação, uma singela marchinha de um compositor iniciante, que mal abria a boca: Chico Buarque.
13 – Atendendo a um pedido de Nara, Chico compôs Com Açúcar, Com Afeto, a primeira de muitas canções em que a mulher assume a narrativa na primeira pessoa. Preso aos preceitos machistas da época, Chico recusou-se a interpretá-la, passando a tarefa para a cantora Jane Moraes. Nara, sempre na vanguarda, achou a atitude ridícula.
14 – Primeira artista da MPB a gravar no mesmo disco Ernesto Nazareth e Lamartine Babo, Villa-Lobos e Custódio Mesquita, Nara nasceu tropicalista antes do movimento existir – e ser gestado com a sua ajuda.
15 – Presidente do júri da polêmica e histórica edição do FIC 1972, o festival que revelou Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Walter Franco, pediu demissão por não aceitar a ingerência dos militares.
16 – Cansada de tudo e de todos, decidiu dar um tempo, no auge da carreira: “Uma hora eu sou a musa da bossa nova, outra a cantora de protesto e ainda tem essa coisa ridícula do joelho. Então me recuso a virar um sabonete e vou dar uma parada”.
17 – Decidida a estudar Psicologia na PUC, por um bom tempo não foi reconhecida pelos colegas de classe, dez anos mais novos.
18 – De volta aos estúdios, decidiu gravar um disco inteiramente dedicado ao cancioneiro de Roberto e Erasmo, ainda vistos como artistas menores por alguns medalhões da MPB.
19 – No fim da década de 1970, rodou o país numa perua Kombi, fazendo shows nos rincões do Brasil ao lado de uma nova e renovadora turma do choro carioca; entre eles, o violonista Raphael Rabello, de 15 anos.
20 – Diagnosticada com um tumor no cérebro, que lhe impôs uma série de complicações, nunca deixou de produzir compulsivamente, gravando praticamente um disco autoral por ano.
Sobre o autor | Tom Cardoso, nascido no Rio de Janeiro, é jornalista com vasta passagem pela imprensa paulistana. Autor, entre outras obras, das biografias do jornalista Tarso de Castro, do jogador Sócrates e do político Sérgio Cabral, foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti 2012 com o livro-reportagem O cofre do Dr. Rui, que narra o assalto ao cofre de Adhemar de Barros, em 1969, comandado pela VAR-Palmares.
FICHA TÉCNICA
Título: Ninguém pode com Nara Leão – uma biografia
Autor: Tom Cardoso
240 páginas
Livro físico: R$49,90
E-book: R$30,90
Editora Planeta.