Após a redemocratização, a fome tem sido abordada de diferentes formas no debate político brasileiro: enquanto alguns políticos a colocaram como carro-chefe de seu governo, como política de combate à pobreza, outros negaram a sua existência. Apesar de avanços significativos ao longo dessas três décadas, a fome nunca foi erradicada no país. Essa é a conclusão de um artigo de pesquisadoras da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fiocruz, publicado na revista “Cadernos de Saúde Pública” na quarta (20).
O estudo tem origem na tese de doutorado da cientista Fernanda Sá Brito, com orientação de Tatiana Baptista. A pesquisadora deu início ao trabalho em 2015, quando o Brasil comemorava a saída do Mapa da Fome da ONU. “A celebração me causava um incômodo: sair do Mapa quer dizer ter menos de 5% da população em situação de fome. Para a nossa população, isso ainda significava que mais de 7 milhões de pessoas continuavam em situação de insegurança alimentar grave, em um país onde o acesso à alimentação é um direito constitucional”, diz Brito.
Com o objetivo de avaliar as abordagens da fome no debate político, a cientista analisou documentos relacionados a governos, partidos e ONGS de 1986 a 2015. A conclusão é que o uso da fome pelo discurso político é retórico, com diferentes vieses.
Brito conta, por exemplo, que, na década de 1980, o ativista e sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho, abordava a fome para mobilização, sensibilizando pessoas sobre a causa. Mais tarde, no governo Lula, o tema ganhou outra abordagem, aparecendo como carro-chefe. “No governo atual, o presidente nega a existência de fome no Brasil”, comenta a pesquisadora. “Enquanto chefe do Executivo, ele tem uma representatividade, e isso legitima a ideia de que a fome não existe, invisibilizando a questão.”
Os dados levantados pela cientista trazem à tona os interesses políticos da inclusão da fome no debate e lembram que, apesar de o país já ter tido sucesso em políticas públicas e programas de alimentação e nutrição, a fome sempre atingiu alguma parte da população. “Independente de metas globais (como o Mapa da Fome da ONU), o uso da fome no debate deve ir além da sensibilização, resultando em mudanças estruturais até que a fome não seja mais uma realidade”.
(Fonte: Agência Bori)