Por Leonardo Capeleto de Andrade — “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Com este que pareceria “o maior diamante do mundo”, começa “Cem Anos de Solidão”, do colombiano Gabriel García Márquez. Neste dia, José Arcádio Buendía pagou para si e seus filhos terem a prodigiosa experiência de tocar no gelo. Para Buendía, aquele era um grande invento que no futuro próximo poderia ser facilmente fabricado em escala com um material tão cotidiano como a água. Mas não foi apenas na tropical Macondo que o gelo foi exaltado.
Em “Fitzcarraldo”, filme de 1982 do alemão Werner Herzog, o personagem Brian Fitzgerald possui uma fábrica de gelo em Iquitos, na Amazônia peruana. “Imagine quantas possibilidades o gelo possui”, afirma o Fitzcarraldo. As crianças adoravam o gelo, mas para o estrangeiro, as pessoas não viam seu potencial – mas imaginava que no futuro este seria encontrado em qualquer navio e armazém.
Décadas se passaram desde o lançamento destas obras ficcionais; porém, o gelo segue sendo uma realidade fantástica em meio à floresta Amazônica. Em meio ao calor tropical, o gelo possui uma importância que vai muito além de gelar a tão brasileira caipirinha.
No interior do Amazonas, o gelo também é o responsável pelo mantenimento do transporte de peixes para as cidades – uma importante atividade econômica em toda Amazônia. Toneladas de gelo são fabricadas diariamente em cidades e carregadas pelos rios para esta logística. Uma atividade repetitiva e diária, visto que o gelo rapidamente derrete no calor tropical amazônico. O gelo é, acima de tudo, uma peça central na economia pesqueira.
Fazer gelo na década de 2020 é algo muito simples e exige poucos ingredientes: basicamente água e energia. Ao redor do mundo as pessoas fabricam gelo em geladeiras e refrigeradores comuns, sem sair de casa. As pedrinhas de água sólida são utilizadas para os mais diversos fins – inclusive gelar bebidas em dias quentes. Apesar deste potencial, o gelo ainda não é encontrado em qualquer barco ou armazém amazônico.
A Amazônia cobre cerca de metade da área do Brasil. Milhões de pessoas vivem dentro desta região. E parte destas em áreas rurais, a quilômetros de distância das grandes cidades. Em toda Amazônia a água é abundante durante todo o ano e certamente não é por falta de água que o gelo ainda é incomum nestas áreas. Mas a energia ainda é uma realidade limitada em muitas residências amazônicas.
Com distâncias amazônicas, a única fonte de energia em muitas comunidades ribeirinhas é a partir de geradores a diesel ou gasolina. Uma energia limitada a poucas horas por dia e com também limitada capacidade de força. Uma capacidade que limita a produção de gelo. Desta forma, o gelo precisa ser comprado em fábricas de gelo de cidades próximas e transportado de barco pelos rios.
Mais de cem anos talvez se passaram desde o encontro dos Buendía com o gelo em Macondo. Atualmente o gelo pode ser fabricado até com o auxílio de energia solar na Amazônia. Mas o encanto de tocar o gelo ainda é presente em muitas comunidades ribeirinhas. Do transporte do gigante Pirarucu até a oficial caipirinha no copo de um turista, o gelo segue como um importante personagem da Amazônia.
Leonardo Capeleto de Andrade é pesquisador associado do Grupo de Pesquisa em Inovação, Desenvolvimento e Adaptação de Tecnologias Sustentáveis (GPIDATS) do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM).
(Fonte: Agência Bori)