Por Eduardo Góes Neves, Simone Athayde e André Baniwa — Nos últimos 40 anos, estima-se que cerca de um quinto da Amazônia brasileira foi perdido para o desmatamento incontrolado, em um processo violento que gerou perdas irreparáveis nos ecossistemas que a compõem, bem como impactos dramáticos nos territórios e modos de vida de povos indígenas e comunidades locais. Tal destruição gerou pouca riqueza: do total impactado, menos de 20% tem uso eficiente e produtivo e 80% estão cobertos por pastagens degradadas ou de baixa produtividade e áreas abandonadas.
Esses números são ainda mais dramáticos quando se comparam as perdas dos últimos anos com a longa história de ocupação indígena e ribeirinha da Amazônia. Se as últimas décadas foram de destruição, os milênios de história indígena que antecederam a chegada dos europeus foram caracterizados pela transformação da natureza em um rico patrimônio biocultural. Esta transformação ocorreu com baixíssimo impacto sobre a floresta. De 1990 a 2020, enquanto as áreas privadas perderam 20,6% da vegetação nativa, territórios indígenas mantiveram 99% de sua floresta em pé, tornando-se uma barreira eficaz contra o desmatamento na Amazônia.
A Amazônia tem sido ocupada pelos ancestrais dos povos indígenas há pelo menos 12 mil anos. As evidências vêm da Bolívia, Brasil e Colômbia. Desde o início, essa história é marcada por manifestações singulares como, por exemplo, alguns dos mais antigos registros artísticos conhecidos nas Américas, preservados nas paredes de grutas na região de Cerro Azul, rio Guaviare, na Colômbia, e em Monte Alegre, no Pará. Do mesmo modo, esses primeiros habitantes se engajaram em práticas de cultivo e seleção de plantas que são consumidas até hoje, tais como a Castanha do Brasil. De fato, a Amazônia é reconhecida internacionalmente como um importante centro antigo e independente de geração de agrobiodiversidade em todo o planeta. Plantas como a mandioca e o cacau, para citar apenas dois exemplos, estão hoje dispersas pelo mundo, mas foram cultivadas inicialmente no oeste da Amazônia.
Tão intensa é a relação que os povos da floresta estabeleceram com as plantas ao longo de milênios de ocupação e manejo dos ecossistemas Amazônicos, que a própria composição atual das florestas foi modificada. Até o momento, 10 mil espécies de árvores na Amazônia foram descritas pelos cientistas, mas apenas 227 dessas espécies correspondem a quase metade de todas as árvores (Ter Steege et al. 2013). Conhecidas como “hiperdominantes”, tais espécies incluem plantas de grande importância econômica e simbólica como o açaí, paxiúba, seringueira, cacau etc. Evidências arqueológicas mostram que algumas dessas árvores são cultivadas e manejadas há milhares de anos, o que permite que se afirme que tais práticas históricas, repetidas ao longo de gerações, contribuíram para criar o padrão de hiperdominância contemporâneo (Levis et al. 2017). Desse modo, é impossível na Amazônia separar-se o patrimônio natural do patrimônio cultural.
A grande Amazônia – entendida aqui como a bacia Amazônica, as Guianas e a bacia do alto rio Orinoco – e os ecossistemas que a compõem são um patrimônio biocultural único, que resulta da interação dos povos da floresta com meio ambiente ao longo do tempo profundo, anterior à invasão e colonização por povos europeus. Hoje, este patrimônio é, em parte, resguardado dentro de áreas protegidas, terras indígenas, territórios quilombolas e outros territórios especialmente protegidos, embora haja restrições a sua ocupação em alguns tipos de unidade de conservação, como parques nacionais e reservas biológicas. Por esta razão, não deve existir uma contradição entre o estabelecimento de terras protegidas e a presença de populações tradicionais – indígenas, quilombolas, beiradeiras – nesses locais. Ao contrário, é a própria presença desses povos que pode assegurar a reprodução dos ambientes que se quer proteger.
Existem outras evidências de transformação da natureza pelos povos indígenas no passado. As terras pretas, que têm sua origem associada ao manejo de restos orgânicos por povos indígenas do passado, são solos muito férteis e bastante produtivos. Presentes em diferentes partes da Amazônia, começaram a se formar há cerca de 5.500 anos e se tornaram disseminados a partir de cerca de 2.000 anos. Terras pretas são hoje um recurso econômico importante, que cobre de 1 a 3% da Amazônia, as quais são utilizadas para o cultivo por diferentes populações humanas da Amazônia.
A arqueologia mostra também que os povos do passado viveram às vezes em aldeias tão grandes que poderiam ser chamadas de cidades. Esses locais estão associados à abertura de estradas pelas áreas de mata em extensões ainda não totalmente conhecidas. Os dados obtidos até o momento, no alto Xingu e no Acre no Brasil, mostram que ao longo dessas estradas ocorreu um processo de cultivo da floresta no qual algumas espécies de árvores, como bambus, foram substituídas por outras, como palmeiras. Trata-se, uma vez mais, de práticas de construir a vida na floresta diametralmente opostas às que se instalam no presente, quando a imensa biodiversidade das florestas é substituída pelo desmatamento, reduzindo a rica biodiversidade Amazônica a um número pequeno de espécies de plantas e animais não nativos.
Os sofisticados sistemas de conhecimento dos povos indígenas (bem como de outras populações locais, como comunidades quilombolas, ribeirinhas e beiradeiras) e os dados emergentes da arqueologia e dos sistemas de informações geográficas nos ensinam que a vida na Amazônia deve estar ligada à produção da diversidade e ao manejo da abundância, lições fundamentais para que esse riquíssimo patrimônio biocultural não seja irremediavelmente perdido.
Sobre os autores
Eduardo Góes Neves é arqueólogo, professor do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia) da USP (Universidade de São Paulo). Sua pesquisa procura mostrar como a Amazônia é um patrimônio biocultural resultante pelo manejo exercido pelos povos da floresta ao longo dos tempos. Eduardo é autor do capítulo 8 do Relatório de Avaliação da Amazônia 2021, produzido pelo Painel Científico para a Amazônia.
Simone Athayde é antropóloga ambiental, professora do Departamento de Estudos Socioculturais e Globais, e do Kimberly Green Centro de Estudos Latinoamericanos e Caribenhos da FIU (Universidade Internacional da Flórida). Sua pesquisa busca entender as interações entre diversidade biológica e cultural na Amazônia e suas implicações para a justiça e governança socioambiental. Autora do capítulo 10 do Relatório de Avaliação da Amazônia 2021, produzido pelo Painel Científico para a Amazônia.
André Baniwa é professor, escritor (Livro Bem-Viver e Viver Bem do povo Baniwa no noroeste da Amazônia Brasileira/2019 e 25 anos de Gestão de Associativismo da OIBI para o bem-viver Baniwa e Koripako/2018), empreendedor social (Educação: Escola Baniwa Pamáali, Economia Baniwa – Arte Baniwa, Pimenta Baniwa, e Patrimônio Cultural), ativista indígena brasileiro, uma liderança do povo Baniwa desde 1992, Vice-Presidente da OIBI (Organização Indígena da Bacia do Içana), estudante em fase de conclusão do Curso Superior de Tecnologia em Gestão Ambiental/Centro Universitário Internacional Uninter. Autor do capítulo 32 do Relatório de Avaliação da Amazônia 2021, produzido pelo Painel Científico para a Amazônia.
(Fonte: Agência Bori – texto foi originalmente publicado no Nexo Políticas Públicas e na Agência Bori)