É cultural e até psicológico: pesquisa do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) apontou que 73% dos brasileiros não gostam de falar sobre a morte, sendo que 10% acham que, ao fazer isso, podem atrair a dita cuja. Pensamentos fantasiosos à parte, o que essa falta de costume em se prevenir adequadamente para esse momento inevitável da vida traz mesmo é muita dor de cabeça para os familiares. Com a pandemia e os riscos maiores, a população começou a se preocupar um pouco mais: segundo o Colégio Notarial do Brasil, o número de testamentos registrados vem crescendo, tendo atingido 134% somente entre abril e julho de 2020. Mas ainda há muitos equívocos e desconhecimento em torno do assunto.
“O brasileiro não tem o hábito de pensar na disposição de seu patrimônio no período após o falecimento; sempre predominou por aqui a sucessão legítima, ou seja, aquela já disposta pela lei para quem não deixou testamento”, destaca a advogada Stella Serafini, coordenadora do curso de Direito do Centro Universitário UniMetrocamp. “Mas com a pandemia, muitos começaram a ver o fenômeno da morte como algo próximo, o que resultou não só no maior registro de testamentos mas também de uniões estáveis convertidas em casamentos”.
De acordo com Stella, embora muita gente pense que testamento é algo que se aplica apenas aos detentores de grandes fortunas, qualquer pessoa maior de 18 anos e com pleno discernimento no momento da elaboração do documento pode determinar a disposição de seus bens. “O mais comum é o testamento por instrumento público, cujo interessado procura um cartório e registra sua vontade por meio de uma escritura pública, lavrada pelo Tabelião na presença de testemunhas”, aponta. “Mas existem outros tipos, como o testamento cerrado, também feito em cartório, mas onde ninguém tem conhecimento do teor até o falecimento do testador, e o particular, escrito pela pessoa e lido perante três testemunhas”, enumera. “Em todos os casos, é recomendável a orientação de um advogado”.
A especialista esclarece as dúvidas mais comuns quando se trata de testamento:
1 – Posso mudar de ideia depois de feito o testamento? “Sim, é totalmente possível; aliás, é da essência do testamento a possibilidade de revogação ou de alteração. Tanto é que, por exemplo, uma cláusula que eventualmente proíba a revogação do testamento é inválida. O documento posterior vale sobre o anterior, de modo que, existindo vários testamentos sucessivos, vale o último, a não ser que ele se destine apenas para completar o anterior, hipótese em que ambos serão considerados”.
2 – O que posso colocar no testamento? “A regra é a seguinte: metade do patrimônio da pessoa é automaticamente destinada a seus herdeiros necessários, nessa ordem: descendentes, ascendentes e cônjuge. Quem tem filhos, pais ou cônjuge, só pode testar metade de seu patrimônio, porque a outra metade é destinada a eles – essa parte é chamada de legítima. Já a pessoa que não tem herdeiros necessários pode testar a totalidade de seu patrimônio”.
3 – Posso colocar outras orientações no testamento ou apenas a divisão do patrimônio? “Sim, podem ser colocadas outras questões além das patrimoniais, como nomeação de tutor para filhos menores, reconhecimento de filho, recomendações sobre o funeral e outros. Há ainda uma modalidade de testamento que se chama testamento vital ou biológico, em que o testador manifesta o desejo de, encontrando-se doente, se submeter a determinado tratamento ou, também, que não seja submetido a nenhum procedimento que evite a sua morte. Mas é importante esclarecer que essas orientações não incluem a possibilidade de eutanásia, que é considerada crime no Brasil”.
4 – Meu animal de estimação pode ser meu herdeiro? “Embora tenhamos visto algumas notícias assim em outros países, no Brasil só pessoas naturais e jurídicas podem ser nomeadas herdeiras, sendo impossível a nomeação de animais. O que pode ser feito é nomear uma pessoa como herdeira testamentária, com o encargo de que ela só receberá a herança se cuidar de determinado animal de estimação, por exemplo”.
5 – É possível deixar registrado as minhas orientações sem a elaboração de um testamento? “Para pequenas disposições de vontade, como o enterro, valores de pouca importância, roupas, móveis, joias de pouco valor ou outros objetos pessoais, não é necessário fazer um testamento. É possível deixar um escrito particular chamado codicilo com a disposição desejada, datar e assinar, que terá validade”, finaliza a advogada.