No dia 31 de março de 1964, tropas militares marcharam de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro com o objetivo depor o governo de João Goulart, presidente brasileiro à época. Esse foi o começo de um período de ficaria marcado na memória dos brasileiros. No dia 2 de abril de 1964, o presidente do Senado declarava vagas a presidência e a vice-presidência da República, empossando o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, na presidência da República. O ato teria implicações na vida dos brasileiros nos próximos 21 anos.
O que aconteceu durante o período de 1964 a 1985 é alvo de debate político até os dias atuais. Há quem defenda que o que ocorreu foi uma revolução e não uma ditadura militar, como historiadores conceituam. “A Historiografia em si considera como ‘revolução’ todo e qualquer movimento que resulte em transformações políticas, econômicas e/ou sociais num curto período de tempo. Sendo assim, o golpe civil-militar de 1964 não se configura como uma revolução. Afinal, trata-se de um processo de caráter conservador, que objetivava justamente evitar transformações que supostamente ocorreriam no Brasil, arquitetadas por um governo que, na visão dos militares, estaria alinhado ao comunismo soviético”, explica o historiador e especialista em ENEM Cássio Luige.
Fernanda Ribeiro Haag, mestre em Linguagens e Sociedade e doutoranda em História Social, destaca que chamar esses eventos de revolução, justificando que visavam pacificar o país e protegê-lo da “subversão” ou do “comunismo”, não encontra sustentação conceitual. “Se nos ativermos às discussões conceituais, vemos que revolução é uma mudança radical nas estruturas de determinada sociedade, vide exemplos da Revolução Haitiana ou Francesa. Ora, a estrutura social brasileira não foi modificada pela chegada ilegal dos militares ao poder em 1964. O conceito de golpe se aplica muito mais ao Brasil de 1964. O cientista político Álvaro Bianchi fala sucintamente que o golpe de Estado ‘é uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político’“, destaca.
Para o historiador Ricardo Carvalho, chamar de revolução o Golpe de 1964 é fazer um eufemismo político. “É uma tentativa de disfarçar o caráter autoritário, inconstitucional. E como a gente diz, um estado de exceção que se estabelece no Brasil, desrespeitando toda a ordem democrática. Isso é comum. Os ditadores nunca vão se autointitular de ditadores”, disse.
Atos Institucionais | É importante compreender que os Atos Institucionais (AI’s) foram decretos autoritários que ‘legalizavam’ as ações de Estado consideradas ilegais antes do início do governo militar, é como explica Cássio Luige. “Por meio deles, os golpistas solidificaram as bases da ditadura. Gradualmente, os AI’s foram retirando poderes do judiciário e do legislativo, e transferindo-os ao executivo que estava sob controle militar, tal qual ocorre em outros governos ditatoriais. O desequilíbrio entre os três poderes em detrimento da concentração de poder na mão dos militares deixava a sociedade, de maneira geral, a mercê de abusos de poder”, pontua o professor.
Durante o período foram promulgados 17 atos institucionais, regulamentados por 104 atos complementares, e que garantiram uma forte centralização administrativa e política do Brasil. “Os impactos dos atos foram em vários setores, desde alterar a forma de escolha de presidentes, o sistema partidário, a abertura ou não do Congresso até mesmo afetando os direitos básicos dos cidadãos: liberdade de expressão, direito de ir e vir, direito a Habeas Corpus, exigência de mandado para prisão”, relata Luciana Haider, professora e socióloga do Centro Universitário UniAcademia, de Juiz de Fora/MG.
Ainda segundo Luciana Haider, os impactos dos atos foram em vários setores, desde alterar a forma de escolha de presidentes, assim como “o sistema partidário, a abertura ou não do Congresso até mesmo afetando os direitos básicos dos cidadãos, como a liberdade de expressão, o direito de ir e vir, o direito a Habeas Corpus e a exigência de mandado para prisão”, pontua a professora, que ainda completa: “Entre suas consequências podemos ressaltar o ato institucional mais famoso assinado em 13/12/1968, o AI-5, que literalmente fez o governo militar – que se fingia de democrático – assumir seu lado autoritário. As torturas, a prisão de opositores, a censura prévia aos meios de comunicação, o fim do direito de responder em liberdade por acusações – tudo isso se estabeleceu a partir do AI-5. Um período sombrio, que trouxe reflexos históricos ainda hoje em nossa realidade política, econômica e social”.
Outro fato também destacado pelo historiador Cássio Luige é que algumas pessoas foram violentadas antes mesmo que sua culpa fosse comprovada. “É comum que pessoas que tem simpatia com o governo militar afirmarem que a ditadura ‘só perseguia aqueles que mereciam’. Mas, além de considerar que nenhum ser humano ‘merece ser torturado’, é importante lembrar que algumas pessoas foram violentadas antes que sua culpa fosse sequer comprovada. Além disso, por meio de obras como Cativeiro sem Fim, encontramos histórias de crianças que foram vítimas destes abusos de poder dos militares”, conclui.
Censura | Com o AI-5, a censura passou a atuar com mais intensidade, censurando a imprensa nacional de divulgar fatos que desagradavam o governo vigente. “Não era difícil encontrar nas primeiras páginas dos jornais da época receitas de bolo, trechos de Os Lusíadas ou simplesmente espaços vazios. Ali estavam publicações consideradas subversivas e retiradas do jornal antes da publicação”, comenta Cássio.
O Jornal da Tarde, de São Paulo, foi um dos afetados durantes o período. Já na edição, em que noticia o AI-5, o jornal publicou uma previsão de tempo que ficou famosa descrevendo que haveria tempestades e nuvens negras, uma referência à ditadura. No livro Jornal da Tarde – Uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira, Ferdinando Casagrande conta que o editor Ruy Mesquita teve a ideia de colocar receitas que não funcionavam no lugar de matérias censuradas, para alertar o leitor de que algo estava estranho. Em algumas receitas, haviam críticas veladas ao regime e a apoiadores, como a receita de frango ao passarinho, uma clara referência ao senador Jarbas Passarinho, a famosa receita “Lauto Pastel”, em referência ao governador Laudo Natel e uma página inteira intitulada “Receitas do Alfredo’s”, em referência ao ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, considerado um dos mentores intelectuais da censura.
Esses atos durante a ditadura foram realizados porque o jornal não podia publicar notícias que não eram agradáveis ao governo. “Para quem acredita que a criminalidade era menor na época da ditadura, é importante lembrar que problemas sociais, políticos e econômicos eram prejudiciais à imagem do governo. Sendo assim, estas notícias eram censuradas”, disse o historiador Cássio.
Economia: Crescimento sem desenvolvimento | Obras faraônicas, investimento em infraestrutura e uma grande industrialização são usualmente justificativas usadas para defender o período militar. No entanto, o alto gasto público fez com que o Brasil tivesse o conhecido “Milagre Econômico”, um período de muito crescimento econômico, com aumento do Produto Interno Bruto (PIB), mas um baixo desenvolvimento, com baixa na qualidade de vida da população. O período deixou como consequência uma década de 1980 de muita dificuldade, especialmente com a inflação.
A economista Pollyanna Rodrigues Gondin explica que no período do “Milagre Econômico”, o PIB brasileiro chegou a taxas acima de 10%. “Os resultados consideráveis em relação ao PIB brasileiro foram decorrentes dos incentivos à industrialização (subsídios e incentivos fiscais), dos investimentos em infraestrutura que já vinham ocorrendo, políticas de incentivo à exportação, abertura ao capital externo e algumas reformas políticas. Um dos resultados foi o expressivo crescimento da indústria de transformação. Como dito anteriormente, o PIB expressa o crescimento econômico, de modo que um país pode crescer, mas ao mesmo tempo não se desenvolver. E foi exatamente o que aconteceu com o nosso país”, conta.
Mas do outro lado, a vida do brasileiro continuava a ser difícil. “Na verdade, houve uma piora significativa de indicadores sociais (desenvolvimento econômico), o que faz, de modo geral, se questionar a veracidade do período conhecido como ‘Milagre Econômico’. Uma das consequências mais gritantes da ditadura militar foi o aumento da desigualdade social. Para além disso, a falta de acesso da população a dados públicos, aumento da concentração de renda, inflação e aumento do endividamento externo. Durante a ditadura muito se falava em ‘deixar o bolo crescer para depois distribuir seus pedaços de forma igualitária’. Em outras palavras, o que se afirmava era ‘primeiro, promoveremos o crescimento da nossa economia, e depois, distribuiremos essa renda com a população’. Isso de fato não ocorreu”, relata Pollyanna.
Fim da ditadura | Mas mais do que a situação econômica, as consequências da ditadura militar no Brasil são discutidas até os dias de hoje. Uma das razões é a forma como a ditadura terminou. O Brasil passou por um processo de reabertura que iniciou no fim da década de 70 e se arrastou até a década de 80, culminando na promulgação da Constituição de 88, vigente até hoje.
O historiador Ricardo Carvalho destaca que ainda há uma discussão entre os pesquisadores sobre como o período militar terminou. “Há quem diga que foi o próprio desgaste do modelo econômico, o famoso Milagre Econômico do regime militar. Outros dizem que existia um desejo de determinados setores liberais de assumir o comando da nação pelo fracasso do modelo econômico do próprio estado autoritário. Mas há uma teoria que me parece de interesse, que é a dialética da repressão. Os próprios colaboradores do golpe, como o governo dos Estados Unidos da América, teriam ajudado nessa pressão. O que é a dialética da repressão? É que quanto mais você reprime, mais ela faz se desenvolver também, dentro da estrutura, os movimentos de oposição. É como um pai autoritário que quanto mais ele oprime, censura a liberdade do filho, mais o filho busca caminhos não tradicionais para manifestar a sua liberdade. Há quem defenda que o excesso de repressão da ditadura acabou favorecendo o surgimento de muitos grupos de oposição e alguns que, inclusive, atuavam na clandestinidade. Havia a defesa da necessidade do processo de abertura, até para diminuir a força desses setores da oposição”, conclui.