Desde o início da pandemia de Covid-19, a violência doméstica contra mulheres e meninas cresceu no mundo todo, revelando a amplitude deste fenômeno. Segundo a ONU Mulheres, os casos aumentaram 30% em diferentes países do mundo, da França ao Chipre, de Singapura à Argentina. No Brasil, as chamadas para o 190 aumentaram 3,8% em 2020, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O disque-denúncia de violência doméstica disponibilizado pelo Ministério dos Direitos Humanos recebeu 105 mil chamadas de mulheres neste mesmo período. O aumento de 1,9% dos feminicídios e de medidas protetivas em muitas delegacias e a diminuição de 9,9% de registros policiais de casos de violência contra a mulher, em relação a 2019, sugerem que a pandemia impactou o atendimento a essas mulheres de forma significativa. Esse cenário faz com que cresça a subnotificação desse tipo de violência.
Além da recomendação de isolamento social imposta pela doença, as causas do aumento da violência de gênero são várias e demandam estudos mais aprofundados. Entretanto, já se sabe que contextos de crise sanitária, econômica e social exacerbam a divisão sexual do trabalho, reforçando o papel de cuidado não remunerado que as mulheres historicamente exercem. O desemprego das mulheres e de seus familiares, somado à queda da renda, à volta da fome e ao fechamento das escolas, são fatores que agravam a situação.
A violência de gênero possui múltiplas dimensões e geralmente se apresenta sob mais de uma forma. Sua expressão no ambiente doméstico e familiar é uma das mais difíceis de enfrentar, por ser de autoria de familiar ou de pessoa com quem a mulher mantém relação afetiva. Violências física, psicológica, patrimonial, moral, sexual se misturam e, infelizmente, podem ser o prenúncio de feminicídio.
Com a igualdade de direitos conquistada na Constituição Federal e as medidas previstas na Lei Maria da Penha, houve muitos avanços na configuração do problema e na formação de uma rede de proteção social às mulheres que sofrem violência. No entanto, vale lembrar que apenas em 2021, na decisão da ADPF 779, o STF consolidou o entendimento de que a legítima defesa da honra não pode mais ser alegada em defesa do agressor.
Desde 2003, com a criação da Secretaria de Política para as Mulheres, as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres são ampliadas e passam a incluir ações integradas de assistência social, saúde, segurança pública e acesso à justiça que proporcionam acolhimento, cuidados e defesa dos direitos. Para avançar no sentido de garantir esse direito a todas, essas políticas precisam ter financiamento e apoio de todas as esferas de governo e da justiça.
É importante, por exemplo, que haja um olhar específico para a violência contra mulheres mesmo em municípios de pequeno e médio porte, onde não há demanda ou equipamentos especializados no atendimento a mulheres. A partir desse olhar, se poderá diagnosticar o problema e construir estratégias de atendimento às mulheres e aos agressores.
Deve-se cuidar para que o atendimento à mulher, especialmente nas delegacias de polícia, não seja tão ou mais violento do que o ato de violência sofrido, reforçando a vitimização ao invés de garantir direitos. Outro ponto importante a ser observado é a articulação em rede dos serviços governamentais e da Justiça e o diálogo permanente com os movimentos de mulheres do território. É essencial, ainda, que a Justiça avance na concessão de medidas protetivas atreladas à resolução de conflitos em processos de divórcios e guarda de filhos.
No atual contexto, faz-se ainda mais urgente a caracterização da violência contra a mulher como grave violação de direitos humanos e a implementação de políticas públicas especializadas e articuladas. Se não fizermos isso, enquanto sociedade, estaremos permitindo o avanço de grandes retrocessos na agenda de direitos das mulheres, duramente conquistados nas últimas décadas.
Sobre as autoras:
Carolina Gabas Stuchi, Alessandra Teixeira e Regimeire Maciel são professoras da UFABC e pesquisadoras integrantes da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas (RBMC).