Por Rodica Weitzman — A pandemia trouxe à tona vulnerabilidades socioeconômicas latentes, que se revelam dentro de um furacão que arrastou famílias de comunidades rurais e urbanas, com diferentes graus de intensidade, pela força de sua ventania devastadora. As repercussões nocivas desta crise certamente têm ganhado mais atenção nas narrativas dos veículos de comunicação. Elas, no entanto, nem sempre dão voz aos sujeitos diretamente envolvidos.
O outro lado, que precisa ser mais bem visibilizado, é composto por coletivos, redes e movimentos sociais – muitos protagonizados por mulheres – que constroem estratégias que podemos nomear de gestos de “cuidado coletivo”, envolvendo a produção, doação, troca e comercializacão de alimentos agroecológicos. São movimentos que lutam pela segurança e soberania alimentar e pela defesa dos territórios. Ao jogar luz nestas práticas, podemos ressignifica-lás como formas de resistência e de re-existência que ganham expressividade em situações vivenciadas “no olho do furacão” – perante os altos índices de insegurança alimentar e pobreza que se agravaram ao longo da pandemia e que se conjugam, de maneira perversa, com a privação de direitos.
Pesquisas realizadas com mulheres de diversas comunidades rurais e urbanas em 2020 demonstram que as expressões espontâneas de cuidado passam a ser compreendidas como estratégias de sobrevivência e de ação política durante a pandemia. É importante pontuar que essas expressões do “cuidado”, historicamente invisibilizadas como formas e trabalho, se revelam no cerne destes coletivos, envolvem dimensões dos afetos e são atravessadas por relações de reciprocidade – doações e trocas.
Neste contexto, são as mulheres que se colocam na linha de frente. Pesquisa sobre impactos da Covid-19 realizada por integrantes da Rede Feminismo e Agroecologia do Nordeste, por exemplo, mostrou que 75,2% das mulheres rurais da região nordeste do Brasil participaram de atividades vinculadas a algum movimento social ou associação, sendo que 43% estavam envolvidas em grupos de mulheres ou comunitários que buscam gerir ações contra os efeitos da Covid-19, como estratégias de enfrentamento da emergência sanitária e de repartição de alimentos nos seus territórios. Esse tipo de participação feminina se replica em diversos territórios. Por exemplo, 93 mulheres agricultoras da Associação dos “Moradores e Pequenos Produtores do Estado do Piauí” (AMPEPI), que lideram um empreendimento produtivo com famílias em três territórios rurais da região semiárida envolvendo o cultivo de uma diversidade de culturas nos quintais, relatam que, durante a pandemia, estiveram ativamente envolvidas em uma campanha contra a fome que envolveu a doação de alimentos para os grupos sociais que vivem nas periferias das cidades. Também conseguiram ativar o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) em dois municípios, uma solução que lhes ajudou a ampliar os seus espaços para comercialização, especialmente diante da suspensão das feiras, devido ao cumprimento das regras de isolamento social.
Outro caso ilustrativo é do Centro de Integração na Serra da Misericórdia na região metropolitana do Rio de Janeiro (CEM), que também conta com o protagonismo das mulheres nas suas iniciativas. Desde março de 2020, o CEM se envolveu ativamente em um processo de doação de alimentos agroecológicos via o projeto “Campo e Favela de mãos dadas contra o corona e a fome”, promovido pela Rede Ecológica. Ana Santos, representante do CEM, conta que, durante esse período, as entregas quinzenais de alimentos agroecológicos para 200 famílias — com foco maior nos grupos sociais mais vulneráveis: mães solteiras, idosos e crianças — promoveram uma interação entre diversos/as agricultores/as de outras regiões. Houve outros desdobramentos, como o fortalecimento dos processos produtivos dentro dos quintais da comunidade local, nos quais as mulheres exercem um papel central nos processos de cultivo de uma diversidade de plantas alimentícias e medicinais e nas práticas de doação e troca de sementes e mudas com parentes e vizinhos. De acordo com Ana Santos, “os quintais entraram em cena com muita força” durante o período da pandemia, de modo que fortaleceram as ações territoriais nas bases da agroecologia.
As estratégias organizativas no âmbito territorial que testemunhamos ao longo da pandemia nos diferentes territórios do Brasil nos revelaram que as manifestações de cuidado — esse trabalho valioso de “cuidar um/a do/a outro/a”, em todos os sentidos — é central para a sustentação da ação política, da preservação da sociobiodiversidade e da segurança alimentar e nutricional. As mulheres atuam como verdadeiras “guardiãs” do tecido socioambiental dos territórios rurais e urbanos, que preservam e sustentam os bens comuns, revelando os diversos significados dos alimentos na costura de novas relações sociais.
Sobre a autora | Rodica Weitzman é doutora em Antropologia Social (PPGAS-MN/UFRJ) e é pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). É pesquisadora afiliada ao Núcleo de Antropologia da Política (UFRJ) e ao Núcleo “Gênero e Ruralidades” (UFRRJ), integrante do GT de Mulheres da ANA – Articulação Nacional de Agroecologia, Conselheira do CONSEA-Rio e integrante de AMA-AWA – Aliança de mulheres em Agroecologia no âmbito da América Latina.
(Fonte: Agência Bori)