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Opinião: O MST na mira do agro, por Paulo Niederle

Rio Grande do Sul, por Kleber Patricio

Foto: Camilla Shaw.

Já fazia algum tempo que o MST não estava tão evidente na cena política como nessas últimas semanas. O intento da direita mais conservadora de, via Comissão Parlamentar de Inquérito, criminalizar o movimento, apoia-se na velha ladainha do direito à propriedade, mas esconde motivações originais e mais intricadas.

Nos anos 1990, a legitimação da reforma agrária perante a sociedade forçou as elites agrárias a aceitar um pacto político de coexistência. Esse pacto instável e frágil manifestou-se institucionalmente na coexistência de dois ministérios, da Agricultura (MAPA) e do Desenvolvimento Agrário (MDA) e, no plano discursivo, na ideia posteriormente repetida à exaustão pelo presidente Lula, de que “há espaço para todos”, ou seja, para a agricultura familiar e para o agronegócio.

No entanto, a deposição da presidenta Dilma Roussef revelou a fragilidade desse pacto. Logo em seguida, a extinção do MDA, como uma das primeiras ações de Temer, e o desmantelamento ativo das políticas para a agricultura familiar e para a reforma agrária pelo governo Bolsonaro demonstraram que estava em curso um reposicionamento mais radical das forças e ideias políticas.

Antes mesmo de isso acontecer, o agro (ocultando o negócio) já havia se lançado na defesa de uma velha narrativa: a de “uma única agricultura”, segundo a qual todos os agricultores fazem parte deste setor (e não mais grupo político) fundamental para a economia brasileira. Com um tom populista e autoritário, que apela para a unidade de um “povo” (o povo do agro) contra um inimigo que precisa ser eliminado (todos que impedem o progresso da agricultura), o agro conseguiu inclusive incorporar a parcela mais conservadora da agricultura familiar e, com o apoio dela, eleger e sustentar Bolsonaro.

Os movimentos sociais passaram a ser criminalizados e perseguidos. O próprio MST escolheu limitar seu repertório de ações públicas para evitar uma escalada da violência contra os agricultores. As ocupações deram espaço a estratégias de resistência cotidiana, as quais voltaram-se a ampliar o acesso da população mais pobre a alimentos saudáveis por meio de novos canais de distribuição de alimentos (cooperativas, armazéns, feiras livres, doações e cozinhas solidárias, entre outros).

Apesar da sua força, a narrativa do agro não foi suficiente para impedir o retorno de Lula à presidência e, com ele, a reconstrução das condições democráticas para que os movimentos sociais voltassem às ruas para pressionar o governo. As ocupações do Abril Vermelho foram a face mais visível desse processo e se tornaram a desculpa que o agro necessitava. No entanto, a CPI do MST, que está em discussão no Congresso, tem uma motivação mais profunda e está associada à própria incapacidade que o agro demonstrou de dar respostas à grave crise de insegurança alimentar que afeta as famílias mais pobres.

Perante a sociedade, o que legitima a reforma agrária atualmente é o fato de que os movimentos orientados pela agroecologia e pela segurança e soberania alimentar, tais como o MST, tem sido crescentemente reconhecidos pelas alternativas mais inovadoras de combate à fome e de construção de sistemas alimentares sustentáveis, saudáveis e justos.

Essas alternativas estão agora em cima da mesa do governo e podem, se bem ajustadas, orientar a construção de uma nova geração de políticas alimentares. Assim como aconteceu com o Programa de Aquisição de Alimentos, criado em 2003, essas políticas legitimarão a existência de outras formas de fazer agricultura, de um mundo rural mais plural e diverso, além da própria ação do Estado na construção de mercados. Tudo isso assombra os homens do agro.

A nova tentativa de criminalizar o MST, de colocá-lo na mira, não se deve às ocupações de terra, mas a algo muito mais profundo: o questionamento ao agro enquanto narrativa que sustenta um modelo único de agricultura e sistema alimentar.

O MST deve se preocupar com o desenrolar desse processo porque o relator e o presidente da CPI estarão dispostos a passar a boiada sobre a constituição. Mas a parcela pop e tech do agro também precisa estar atenta porque a escalada dos conflitos políticos fará a CPI se tornar um tiro pela culatra para seus negócios. O governo, por sua vez, necessita construir um novo pacto, mas, para isso, precisará convencer o agro a cortar na própria carne, separar o joio do trigo, isolar sua ala mais conservadora e autoritária. Sem isso, não haverá pacto, haverá luta.

Sobre o autor | Paulo Niederle é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

(Fonte: Agência Bori)