Um estudo pioneiro no Brasil está revolucionando a detecção precoce do câncer de colo do útero no sistema público de saúde de Indaiatuba, interior do Estado de São Paulo. Liderada por médicos do Hospital da Mulher Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti (Caism) da Unicamp, a pesquisa usa um teste de DNA para a detecção do HPV aliado ao monitoramento ativo do público-alvo a fim de antecipar o diagnóstico da doença em dez anos. Os resultados dessa pesquisa foram publicados na revista científica Scientific Reports, do grupo Nature, e estão sendo utilizados como base para uma mudança nas políticas públicas do Ministério da Saúde voltadas à prevenção de câncer de colo do útero.
O projeto demonstrou que a substituição do tradicional exame de Papanicolaou pelo teste de DNA para detectar a presença do HPV não apenas é mais eficiente na identificação de lesões pré-cancerosas como também pode ser mais econômica para o sistema de saúde se implementada junto com um plano de monitoramento eficaz. No caso do teste de DNA, as mulheres fazem acompanhamento em ciclos de cinco anos e não mais de três. Outro ponto vantajoso do teste se deve, em grande parte, à sua precisão e reprodutibilidade. Enquanto o exame de Papanicolaou depende da interpretação humana em diferentes etapas, o teste de DNA do HPV é um processo automatizado, eliminando muitas das variáveis que podem levar a falsos negativos ou positivos.
Segundo um dos responsáveis pelo estudo, o pesquisador e médico do Caism Júlio Teixeira, com a mudança houve um aumento expressivo na detecção de lesões pré-cancerosas e um incremento de 60% na identificação de casos de câncer em estágios iniciais, quando comparado ao método de detecção tradicional. “Nós aumentamos em quatro vezes a detecção de lesões pré-câncer em relação aos cinco anos anteriores”, explica Teixeira. “Quando analisamos os casos de câncer detectados, dois terços eram microscópicos, em vez de avançados, como ocorria anteriormente.”
O pesquisador estima que, se o projeto desenvolvido em Indaiatuba for implementado em escala nacional, o novo método poderia evitar cerca de 350 mortes por mês no Brasil, das mais de 468 que ocorrem mensalmente devido ao câncer de colo do útero. O impacto potencial é significativo, de acordo com o médico. Além de evitar mortes, a detecção em estágio inicial das lesões precursoras e do câncer abre caminho para um tratamento mais simples, dispensando equipamentos ou infraestrutura sofisticados. Quando um câncer passa do estágio 1, deixa de ser operável e, na maioria das vezes, será tratado com radioterapia ou quimioterapia, procedimentos que exigem estrutura e equipamentos nem sempre disponíveis em todos os lugares do país. Ainda que os testes de DNA sejam mais custosos em comparação com o Papanicolau, a médio e longo prazo os governos gastariam menos. “Custa menos por ano de vida ganho”, afirma o pesquisador.
Política pública
O êxito do projeto em Indaiatuba não passou despercebido pelo Ministério da Saúde, que, desde 2022, vinha acompanhando os resultados preliminares do estudo. Em março de 2024, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) aprovou o uso do teste de HPV no SUS. A previsão é que, dentro de poucos meses, o teste estará disponibilizado no sistema de atendimento médico.
Teixeira argumenta, no entanto, que não há necessidade de esperar por mais estudos ou implementações-piloto. “Por que você vai esperar mais alguns anos?”, questiona. “Pesa na consciência continuar fazendo o que estamos fazendo, em frente a todas essas evidências”. O pesquisador defende uma implementação gradual do novo método, começando pelos Estados e municípios já preparados para isso. São Paulo seria um exemplo de Estado com condições adequadas para essa transição. “Quando você coloca esses números para um governador, um prefeito, um secretário, ele vai ver isso, ele sabe como é o problema na cidade dele ou na região dele. Ele vai querer fazer isso”, argumenta o médico.
Um aspecto crucial para o êxito do projeto de Indaiatuba foi a implementação de um sistema informatizado a fim de gerenciar o programa de rastreamento. Esse sistema permite um controle eficiente da população-alvo, convocando e desconvocando pacientes conforme necessário. Teixeira ressalta que o aplicativo do SUS, criado durante a pandemia de Covid-19, poderia ser aproveitado em nível nacional. Há cerca de um ano, o Ministério da Saúde implementou um projeto em Recife (Pernambuco) com base no estudo realizado em Indaiatuba, buscando replicar e expandir o modelo para uma cidade mais populosa e com alto índice de mulheres com esse tipo de câncer.
Estudo-sentinela
O estudo em Indaiatuba não terminou com a publicação dos resultados de cinco anos. Na verdade, a pesquisa, que já completou sete anos e meio, continua. Teixeira explica que os resultados positivos transformaram o projeto em um ‘estudo-sentinela’, fornecendo informações valiosas sobre o que acontece nas rodadas subsequentes de testes. “Nesta segunda rodada, vamos repetir os testes nas mesmas mulheres que já os realizaram há cinco anos e, dessas que fizeram, retiramos aquelas que tinham a doença e que geraram exames e tratamentos”, explica o pesquisador.
As informações coletadas daqui por diante revelam-se importantes para o planejamento de longo prazo do programa, pois permitirá que os gestores de saúde responsáveis por implementar o método possam antecipar as mudanças nas demandas por diferentes tipos de serviços ao longo do tempo, otimizando a alocação de recursos. Embora não se consiga prever exatamente quando o câncer de colo do útero será erradicado do Brasil, Teixeira explica que podemos olhar para exemplos internacionais. A Austrália, que começou seu programa de vacinação contra o HPV em 2006 e que já utiliza o teste de DNA para o rastreamento do HPV, projeta que o câncer de colo do útero se transformará em uma doença rara antes de 2038.
Com a aprovação do uso do teste de DNA do HPV no SUS, o próximo passo é a publicação das novas diretrizes nacionais para o programa de rastreamento. Teixeira e outros pesquisadores da Unicamp continuam trabalhando e atuam como consultores nesse processo, garantindo que as lições aprendidas em Indaiatuba façam parte do programa nacional.
(Fonte: Unicamp/Secretaria Executiva de Comunicação)