Uma equipe é a responsável pela limpeza de um icônico ponto turístico da cidade serrana de Petrópolis (RJ). Com fachada em estilo normando-francês, e o interior decorado com base em cenários da Hollywood antiga, o recém-inaugurado Centro Cultural Sesc Quitandinha ocupa as instalações de um edifício construído na década de 1940 para ser um hotel-cassino.
Cada detalhe do ‘palácio’ projetado por Luis Fossati e Alfredo Baeta Neves, foi pensado para impressionar os visitantes – entre eles Walt Disney e Carmen Miranda – e expressar luxo e suntuosidade. Somente a cúpula do Salão Azul, que possui 30 m de altura e 50 m de diâmetro, é a segunda maior do mundo, atrás apenas da cúpula da Basílica de São Pedro, no Vaticano. Muitos lustres e um piso extremamente brilhante, em formato de losangos nas cores preto e branco, foram escolhidos pela famosa cenógrafa Dorothy Draper, que elegeu elementos exuberantes na decoração, como espelhos e muitas referências ao mar, animais e florestas brasileiras. “Cada detalhe deste, hoje, espaço cultural é cuidado e higienizado por funcionários terceirizados que atuam diariamente para garantir o bem-estar de quem trabalha e/ou visita o ponto turístico”, explica a artista mineira Charlene Bicalho, participante da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, que ocupa, até o dia 27 de outubro, o Sesc Quitandinha. A exposição é a mais abrangente mostra dedicada exclusivamente à produção de artistas negros já realizada no país e dá visibilidade (por intermédio da obra processual de Bicalho) à equipe, que ao realizar a limpeza do local, torna possível o funcionamento pleno da instituição.
“Em uma cidade que costuma ser lembrada por seu passado imperial e imigração europeia, poder ‘reposicionar’, mesmo que temporariamente, o papel de atuação destas pessoas dentro de um espaço turístico e cultural é de grande importância”, comenta a artista, que entrevistou todos os funcionários da limpeza para entender o tipo de relacionamento que estes mantêm com a programação cultural que eles apoiam e com a instituição em que atuam. “Os agentes de limpeza em instituições culturais estão por toda parte, principalmente os terceirizados. São eles os primeiros a chegar e os últimos a irem embora. São eles que possuem as chaves e têm todos os acessos de um equipamento como este, mas raras vezes são convidados para uma abertura de exposição, por exemplo, ou para um jantar que celebre o trabalho que realizam. Quando estão em uma situação de abertura ou comemoração, estão sempre trabalhando”, explica.
“É um sonho que a gente tem aqui dentro, todas as pessoas têm, de querer aparecer, de querer ter um lugarzinho a mais, uma visibilidade a mais”, comenta Guilherme Motta, de 18 anos, entrevistado por Charlene. “Minha prática site specific oscila entre a busca do material e o imaterial; o primeiro, geralmente encontro na estrutura de poder alicerçada na arquitetura e, o segundo, na água do hálito das ditas minorias brasileiras, nos saberes e movimentos subalternizados”, comenta Charlene, uniformizada com a mesma cor das vestimentas dos funcionários responsáveis pela limpeza no Centro Cultural Sesc Quitandinha enquanto realiza os diálogos.
“Eu penso hoje que esse trabalho tensiona um ponto fundamental numa cena institucional brasileira, nas discussões raciais. Sabemos que nós, pessoas negras, sempre ocupamos lugares, digamos, subalternizados numa instituição e exercendo profissões dignas, que por anos a fio nós exercemos, nossas famílias exerceram, nossos ancestrais também exerceram. O Brasil, ele é, obviamente, desigual em relação a esse assunto, que é o trabalho”, explica um dos curadores da mostra, Marcelo Campos.
“É importante ressaltar que estas pessoas estão aqui, ocupam este espaço e sem o trabalho que realizam, seria impossível manter este piso tão reluzente e o brilho da estrela do salão principal deste palácio não existiria”, completa Charlene, ressaltando que os funcionários terceirizados que cuidam de manutenção, como os da limpeza, não são um grupo minoritário no Brasil; ao contrário, são a maioria da população. “Aqui em Petrópolis temos homens e mulheres afrodescendentes. Profissionais, alguns jovens e outros mais velhos, que fazem parte deste cenário do mundo das artes em nosso país”, finaliza a artista, que também pode ser vista no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba) até junho realizando uma vídeo-performance na exposição Amefricana, da premiada Rosana Paulino.
Durante a exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, o trabalho comissionado de Charlene Bicalho ocupa todo o Sesc Quitandinha, como uma grande constelação. São intervenções artísticas que vão desde 80 cavaletes de sinalização de ‘limpeza em andamento’ (com frases de autoria dos trabalhadores que os manejam impressas em sua estrutura), um tríptico de fotografias, vídeos que serão exibidos nos televisores responsáveis pela divulgação da programação e em instalações espalhadas por toda parte.
Segundo dados do Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS) a terceirização é motivo para aumento da precarização das condições de trabalho, ocasionando acidentes, desenvolvimento de doenças laborais, redução de salários e enfraquecimento sindical. Ainda segundo o relatório, em pesquisa do ano de 2013, setores tipicamente terceirizados remuneram com salários em média 24,7% menores que setores tipicamente contratantes e ainda apresentam uma carga horária média de trabalho 7,5% maior, com taxa de rotatividade igual ao dobro. O setor de limpeza e conservação é um dos mais vulneráveis à terceirização.
Serviço:
Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro
Centro Cultural Sesc Quitandinha
Até 27 de outubro
Endereço: Av. Joaquim Rolla, nº 2, Petrópolis – RJ
Horário de funcionamento: terça a domingo e feriados, das 10h às 17h
Para saber mais sobre Charlene Bicalho: https://www.premiopipa.com/charlene-bicalho/
Sobre a exposição | A centralidade do pensamento negro no campo das artes visuais brasileiras, em diferentes tempos e lugares. Essa é uma das principais premissas que norteiam o processo curatorial da mostra Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, a mais abrangente exposição dedicada exclusivamente à produção de artistas negros já realizada no país. A exposição apresentará ao público trabalhos em diversas linguagens artísticas como pintura, fotografia, escultura, instalações e videoinstalações produzidos entre o fim do século XVIII até o século XXI por 240 artistas pretos de todo o Brasil, trazendo ao público uma produção artística diversa e potente, porém, historicamente invisibilizada.
Sobre os curadores:
Igor Simões
É doutor em Artes Visuais-História, Teoria e Crítica da Arte-PPGAV-UFRGS e Professor Adjunto de História, Teoria e Crítica da arte e Metodologia e Prática do ensino da arte (UERGS). Foi Curador adjunto da Bienal 12 (Bienal do Mercosul – Curadoria do educativo). É membro do comitê de curadoria da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap), do Núcleo Educativo UERGS-MARGS e do comitê de acervo do Museu de Arte do RS-MARGS. Trabalha com as articulações entre exposição, montagem fílmica, histórias da arte e racialização na arte brasileira e visibilidade de sujeitos negros nas artes visuais. É autor da Tese Montagem Fílmica e exposição: Vozes Negras no Cubo Branco da Arte Brasileira e Membro do Flume – Grupo de Pesquisa em Educação e Artes Visuais. Tem mantido atividades na área de formação e debate sobre arte brasileira e racialização em instituições como MASP, Instituto Itaú Cultural, Instituto Moreira Salles e MAC/USP. Atualmente é curador do projeto Dos Brasis- Arte e Pensamento Negro do Sesc.
Lorraine Mendes
Lorraine Mendes é graduada em Artes e Design pela UFJF, mestra em História pela mesma instituição e atualmente é doutoranda em História e Crítica da Arte no PPGAV-UFRJ, onde desenvolve sua pesquisa sobre as representações do negro e da negritude na história da arte branco-brasileira e os projetos de Nação, realizando uma revisão do arquivo de imagens que formam a ideia de Brasil a partir da agência poética negra contemporânea. Inicia-se na docência no ano de 2017, tendo sido professora substituta do Departamento de Teoria e História da Arte da EBA-UFRJ entre 2019 e 2021. Tem realizado curadorias em feiras, galerias e instituições de arte nacionais e internacionais como desdobramentos de sua pesquisa.
Marcelo Campos
Marcelo Campos nasceu, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Professor Associado do Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes da UERJ. Curador Chefe do Museu de Arte do Rio. Foi diretor da Casa França-Brasil, entre 2016 e 2017. Foi professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Membro dos conselhos dos Museus Paço Imperial (RJ) e Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea (RJ). Doutor em Artes Visuais pelo PPGAV da Escola de Belas Artes/ UFRJ. Possui textos publicados sobre arte brasileira em periódicos, livros e catálogos nacionais e internacionais. Em 2016, lança Escultura Contemporânea no Brasil: reflexões em dez percursos. Salvador: Editora Caramurê, incluindo parte significativa da produção moderna e contemporânea brasileira, em um levantamento de mais de 90 artistas. Realiza curadoria de exposições, desde 2004, em diversas instituições no Brasil, com mais de cem curadorias até o momento, dentre as quais, destacam-se Sertão Contemporâneo, na Caixa Cultural, em 2008, Rio de Janeiro e Salvador; Efrain Almeida: Uma pausa em pleno vôo, no MAM/BA, em 2016 e Bispo do Rosário, um canto, dois sertões, no Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, em 2015. Além da produção citada, as matrizes africanas e afro-brasileiras são pesquisadas em exposições, como, Orixás, Casa França Brasil, 2016; O Rio do Samba: resistência e reinvenção, Museu de Arte do Rio (MAR), 2018, Casa Carioca, MAR, 2020, Crônicas Cariocas, Museu de Arte do Rio (MAR), 2021 e Um defeito de Cor, MAR, 2022. Além das citadas, curou as exposições individuais de Aline Motta, Mulambö, Bqueer, Ayrson Heráclito no Museu de Arte do Rio (MAR). Em 2018, uma grande exposição atualizou o mapeamento da região Nordeste, incluindo pesquisa e trabalho de campo em todos os estados da região, junto com os curadores Clarissa Diniz e Bitú Cassundé, resultando numa mostra de grande porte no Sesc 24 de Maio, em São Paulo. Atualmente, coordena pesquisas sobre artistas afrodescendentes no Projeto de extensão, Arte e Afrobrasilidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
(Fonte: Com Larissa Gallep)