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Instituto Moreira Salles cataloga e disponibiliza para o público a obra iconográfica do artista e inventor Hercule Florence (1804–1879)

São Paulo, por Kleber Patricio

Volney meditando nas Ruínas de Palmira, 1830. Autor: Hercule Florence. Coleção: Cyrillo Hercules Florence.

O Instituto Moreira Salles acaba de catalogar e disponibilizar para o público 526 desenhos, aquarelas e pinturas do artista e inventor franco-monegasco Hercule Florence (Nice, 1804–Campinas, 1879). As obras, que já podem ser acessadas no site do IMS, fazem parte da coleção Cyrillo Hercules Florence, um acervo privado que pertencia à sua família e era pouco conhecido até agora. Entre os aproximadamente 1.200 itens da coleção, há ainda objetos fotográficos, documentos pessoais e numerosos escritos de Florence, que passarão por catalogação.

O acervo sob a guarda do Instituto Moreira Salles se destaca pelo ineditismo e pelo detalhamento na documentação de comunidades e localidades do interior do Brasil até então pouco exploradas. Desde que a coleção chegou ao IMS, em 2023, os itens vêm sendo catalogados, em um trabalho minucioso que inclui a fixação de informações como o título original da obra e sua tradução, confirmação da data e do local em que cada desenho, aquarela e pintura foram produzidos, anotações de pesquisa, histórico de utilização de cada obra e, ainda, a revisão das menções a povos indígenas.

Este último tópico contou com a assessoria da antropóloga Maria Luísa Lucas, professora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, e busca atualizar informações, como o termo mais adequado, hoje, para se referir a determinados povos indígenas a partir da autodenominação desses grupos. A equipe do IMS também incluiu outras informações, como cidades que mudaram de nome. Vila de São Carlos, onde Florence se estabeleceu e formou família após o fim da expedição, é atualizado para Campinas. Por trás de todo esse trabalho, há a preocupação de se esclarecer as modificações realizadas e de manter também o original, para que os pesquisadores possam ter acesso a absolutamente todas as informações.

“Esse esforço de transparência é importante, para que as pessoas possam entender quais foram os critérios adotados”, diz Julia Kovensky, coordenadora de Iconografia do IMS. Ela observa que essa é uma catalogação inicial, realizada de forma a abranger todas as informações possíveis, mas não definitiva. “Futuramente, caso alguns desses critérios precisem ser revistos à luz de novas pesquisas, isso poderá ser feito. Inclusive, para questões mais diretas, como as dos povos indígenas retratados, contamos com as atualizações que virão a partir dos olhares de seus descendentes”, ressalta.

Florence pôde produzir essa obra extensa e importante porque se juntou a uma notória incursão científica: a Expedição Langsdorff, conduzida pelo barão Georg Heinrich von Langsdorff (1774–1852), médico e naturalista alemão naturalizado russo, e patrocinada pelo czar Alexandre I com apoio de d. Pedro I. Em sua primeira etapa, que percorreu o Rio de Janeiro e Minas Gerais (1824-1825), ela contava com Johann Moritz Rugendas como desenhista, mas este decidiu seguir viagem sozinho. Florence, um jovem de espírito aventureiro e explorador que havia chegado ao Brasil em 1824 aos 20 anos, respondeu então ao anúncio publicado em 7 de julho de 1825 no Diário do Rio de Janeiro para substituir Rugendas e, mesmo com pouca formação na área, compôs com o francês Aimé-Adrien Taunay o time de desenhistas da viagem.

A expedição partiu em junho de 1826 de Porto Feliz, em São Paulo, para percorrer, por via fluvial, mais de 13 mil quilômetros pelas regiões dos atuais estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Pará – a maior parte navegando pelos rios Tietê, Paraná, Paraguai, Tapajós e seus afluentes.

O material produzido nessa viagem é um dos grandes conjuntos que formam a coleção de desenhos e aquarelas de Florence e traz uma riquíssima descrição de povos indígenas que ele encontrou ao longo do percurso – ele reproduz com detalhes diferentes pinturas corporais e adornos, conseguindo uma representação bastante fiel de povos como os Guató, Bororo, Apiaká, Terena e Kaingang. E fez o mesmo com pessoas negras, como em desenhos realizados em 1828, quando a expedição se encontrava nos arredores de Diamantino, no Mato Grosso.

“Chamam muita atenção quatro desenhos de pessoas negras, nos quais Florence descreve a suposta etnia – ou proveniência territorial – dessas pessoas”, observa Gustavo Aquino dos Reis, um dos responsáveis no IMS pelo minucioso trabalho de catalogação. “São negros Congo, Cabinda e Rebolo. É interessante perceber que, através de um traço sutil, o artista logrou evidenciar características específicas dessas nações africanas, como, por exemplo, a presença de escarificações corporais.”

Também da equipe de Iconografia responsável pela catalogação, Jovita Santos de Mendonça ressalta a relevância dos escritos de Florence para o projeto do IMS de oferecer a maior quantidade de informações possível sobre a coleção: “O conjunto da expedição é muito emocionante, porque se consegue cotejar com o texto dele. Florence escreveu muito sobre a sua vida, sobre as suas experiências no Brasil, as viagens. Tudo que ele foi experimentando quando se fixou aqui é exaustivamente contado e recontado.”

2º estudo. S. Carlos, 1832. Céu de Sudeste. Autor: Hercule Florence. Coleção: Cyrillo Hercules Florence.

O mesmo acontece com outros dois conjuntos: a série Céus e a série que retrata as fazendas de Campinas. Céus é composta por 34 imagens do céu do Brasil, um registro pioneiro de diferentes formas e cores de nuvens e condições climáticas que reflete o olhar curioso e observador de Florence em relação à natureza. Ao buscar entender a formação das nuvens e outros fenômenos, ele produziu uma espécie de catálogo para servir a artistas como modelo para suas composições. Já os registros de fazendas tratam da expansão agrícola, principalmente do plantio de café e cana-de-açúcar na então Vila de São Carlos, onde Florence se casou com a filha de um influente médico e político da região. O dia a dia de uma fazenda de café naquele período, com o trabalho escravizado, está muito bem documentado não só em imagens como também em seus escritos. Florence escreveu tanto e sobre tudo que viveu aqui no Brasil, que seus textos funcionam como um guia para identificar muitas de suas obras.

A coleção sob a guarda do IMS teve as obras reunidas por um dos netos do artista, Cyrillo Hercules Florence (1901–1995), professor do Laboratório de Física da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, e por isso leva seu nome. Os desenhos e aquarelas se relacionam com outro grande conjunto de obras de Florence que se encontra no Arquivo da Academia de Ciências de São Petersburgo, na Rússia.

Em apenas duas ocasiões esse conjunto de obras de Florence foi exibido ao público. A primeira, na exposição Hercule Florence e o Brasil, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2010, com um recorte de desenhos e aquarelas e de suas invenções fotográficas. A segunda, na exposição Hercule Florence: le nouveau Robinson, realizada em 2017 no Nouveau Musée National de Monaco. O título ‘o novo Robinson’ faz referência ao livro Robinson Crusoé (1719), do inglês Daniel Defoe (1660–1731), que Florence leu quando estudava em Mônaco (sua mãe nascera lá) e que lhe despertou o desejo de viajar cruzando oceanos para além da Europa. A exposição em Mônaco contribuiu para a celeridade com que a obra iconográfica de Florence chega agora a domínio público, já que uma parte expressiva das imagens foi digitalizada por Jorge Bastos, da Motivo, por ocasião da mostra, com padrão semelhante ao do IMS.

Reconhecido pela excelência de sua documentação visual, Hercule Florence se distinguiu em vários campos, notadamente a fotografia – é considerado um inventor na área, tendo realizado no Brasil experimentos ao mesmo tempo que seus pares desenvolviam a técnica fotográfica na Europa. O Instituto Moreira Salles possui em seu acervo algumas raridades, como um conjunto de rótulos para frascos farmacêuticos impressos fotograficamente por Florence em 1833. Seus desenhos e suas pinturas vêm se juntar com peso a esses itens, oferecendo ao público uma visão ampla do trabalho do artista.

“Temos total consciência da importância de facilitar o acesso do público à obra desse autor já tão estudado e ainda tão pouco conhecido. Em nome desse compromisso, foi feito um esforço singular para acelerar a etapa de catalogação dos desenhos, reunindo e atualizando informações, e disponibilizar esse primeiro conjunto no menor prazo possível”, diz Julia Kovensky.

(Com Mariana Tessitore/Instituto Moreira Salles)