Cerca de 50% do desmatamento na Amazônia ocorre em terras públicas, sobretudo nas Florestas Públicas Não Destinadas (FPNDs), áreas ainda sem destinação específica que somam 63 milhões de hectares na Amazônia Legal. No sul do Amazonas, onde as FPNDs cobrem 11,7 milhões de hectares; o desmatamento já alcançou 813 mil hectares até 2023 e pode destruir outros 1,4 milhões de hectares até 2050, é o que revelam estudos publicados hoje, 12 de fevereiro, pela Iniciativa de Legalidade Florestal, do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).
As consequências econômicas dessa destruição são alarmantes. A análise aponta que o desmatamento nas FPNDs do sul do Amazonas pode gerar um prejuízo acumulado de R$15 bilhões em 30 anos. Por outro lado, a conservação e a destinação adequada dessas áreas poderiam criar um modelo econômico sustentável, gerando bilhões de reais em receitas e fortalecendo cadeias produtivas locais. “Ao analisarmos os impactos econômicos e ambientais, fica claro que conservar essas florestas não é apenas uma questão ambiental, mas também um imperativo econômico. O uso sustentável das FPNDs é muito mais eficiente do que sua conversão para pastagens, por exemplo”, destaca Pedro Gasparinetti, um dos autores dos estudos.
A BR-319 e o avanço do desmatamento
A rodovia BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, é um dos principais vetores do desmatamento no sul do Amazonas. Estima-se que 87% do desmatamento na Amazônia ocorre em áreas próximas a rodovias, e a BR-319 intensifica essa pressão ao facilitar a criação de ramais ilegais, que conectam a estrada a áreas de FPNDs, facilitando a exploração predatória.
De acordo com o estudo, as FPNDs próximas à BR-319 têm enfrentado o avanço do desmatamento e da ocupação ilegal. Mais de 52% das FPNDs federais e 77% das estaduais estão sobrepostas a registros no Cadastro Ambiental Rural (CAR), um indício de grilagem de terras e uma prática que vem facilitando a destruição ambiental. “Se nada for feito, o cenário da BR-319 pode se tornar semelhante ao do arco do desmatamento, onde milhares de hectares foram perdidos para atividades ilegais. É urgente implementar ações de fiscalização, destinação adequada e políticas de bioeconomia na região”, afirma Gasparinetti.
O desmatamento e seus impactos na região
Desde 1988, o desmatamento acumulado nas FPNDs do sul do Amazonas já atingiu 813 mil hectares – o equivalente a 7% de toda a área dessas florestas. O estudo do Imaflora aponta que grande parte desse desmatamento está concentrado em áreas próximas à BR-319, onde estão a maioria das FPNDs federais, que são as mais impactadas: pelo menos 14% da área das FPNDs federais já foi desmatada, enquanto nas FPNDs estaduais o índice é de apenas 1%; cerca de 44% do desmatamento total em FPNDs federais e estaduais ocorreu entre 2019 e 2022, período de enfraquecimento das políticas ambientais no país.
O desmatamento não apenas destrói o patrimônio ambiental, mas também compromete serviços ecossistêmicos essenciais, como o regime de chuvas e a captura de carbono. “As FPNDs no sul do Amazonas são a nova fronteira do desmatamento na Amazônia. Elas estão no centro de disputas territoriais, agravadas pela falta de destinação e pelo avanço de atividades ilegais que comprometem não só o equilíbrio ambiental, mas também o desenvolvimento sustentável da região”, aponta Tayane Carvalho, coautora do estudo. “Sem uma destinação adequada, essas florestas podem seguir o mesmo caminho das antigas fronteiras de exploração na Amazônia, onde a grilagem de terras e o desmatamento resultaram em uma série de conflitos fundiários que afetaram os direitos ao uso da terra pelos povos e comunidades tradicionais, a elevada perda de biodiversidade e emissões de carbono em larga escala”, alerta Carvalho.
Sobreposição de CAR e grilagem de terras
O Cadastro Ambiental Rural (CAR), que deveria ser um instrumento de regularização ambiental, é frequentemente usado como ferramenta de grilagem nas FPNDs. O estudo aponta que 52% das FPNDs federais no sul do Amazonas estão sobrepostas por registros fraudulentos no CAR; nas FPNDs estaduais, a situação é ainda mais grave: 77% da área total têm sobreposição de CAR.
As áreas com sobreposição de CAR apresentam taxas de desmatamento maiores, indicando uma relação entre grilagem e destruição florestal. “O CAR, quando utilizado de forma fraudulenta, transforma terras públicas em alvos de especulação fundiária, incentivando o desmatamento e dificultando a destinação dessas áreas para conservação e uso sustentável”, explica Júlia Niero, coautora do estudo.
Manejo sustentável: o potencial econômico das FPNDs
A pesquisa do Imaflora destaca que conservar as FPNDs é economicamente mais vantajoso do que desmatá-las. Além de desempenharem um papel fundamental na regulação do clima global e na conservação da biodiversidade, as florestas públicas não destinadas conservadas podem gerar ganhos significativos por meio de concessões florestais, créditos de carbono e o manejo de produtos não madeireiros.
Cerca de R$6,5 bilhões em 30 anos é o valor que pode ser gerado por concessões florestais de manejo sustentável de madeira e carbono. Produtos florestais não madeireiros, como castanha-da-Brasil e borracha, têm potencial de retorno de R$70,00 por hectare/ano, beneficiando diretamente comunidades locais. Aliado aos outros serviços que a floresta em pé proporciona, esse valor aumenta exponencialmente.
Um hectare de FPND conserva 324 toneladas de carbono, o que pode atrair bilhões em investimentos de mercados de carbono. “Em comparação, a pecuária extensiva, que é um dos principais motores do desmatamento na região, gera apenas R$500 a R$750 por hectare/ano, um valor muito inferior ao que as florestas em pé podem proporcionar”, avalia Marco Lentini, coautor do boletim.
Essas florestas são habitat para uma biodiversidade única, incluindo espécies endêmicas que dependem de blocos contínuos de floresta para sobreviver. “Destinar essas áreas para conservação e uso sustentável é essencial para manter sua capacidade de regular o clima e proteger serviços ecossistêmicos que vão além da Amazônia”, reforça Maryane Andrade.
Soluções práticas
Os estudos apontam a necessidade de priorizar a criação de Áreas Protegidas, como Unidades de Conservação e Terras Indígenas, além da expansão das concessões florestais em FPNDs previamente avaliadas, tanto para restauração florestal, a fim de recuperar áreas desmatadas, como para a promoção do manejo florestal sustentável, que produz madeira de origem legal. Outras ações importantes envolvem cancelar registros fraudulentos no CAR e combater a grilagem de terras e o desmatamento ilegal; investir em cadeias produtivas sustentáveis, como as de produtos florestais não madeireiros; promover o mercado de carbono; condicionar a pavimentação da rodovia a salvaguardas ambientais e sociais robustas, para evitar a expansão de atividades predatórias e resguardar os direitos das comunidades tradicionais locais. “A destinação adequada e a proteção das FPNDs requerem uma abordagem integrada, envolvendo governos, setor privado e comunidades locais”, destaca Leonardo Sobral, diretor de Florestas e Restauração do Imaflora.
Para ele, as Florestas Públicas Não Destinadas no sul do Amazonas estão em uma encruzilhada: podem se tornar um modelo global de conservação e uso sustentável ou seguir o caminho de devastação que outras áreas da Amazônia já enfrentaram. A combinação de destinação estratégica, fiscalização efetiva e promoção de cadeias produtivas sustentáveis é o caminho mais promissor para garantir que essas florestas continuem beneficiando tanto a economia quanto o meio ambiente. “As FPNDs são uma oportunidade única de reposicionar o Brasil como um líder global em conservação ambiental e bioeconomia. Ignorar seu potencial seria desperdiçar um patrimônio insubstituível”, conclui Sobral.
Para acessar os resultados dos estudos, leia os boletins técnicos Timberflow: os boletins Timberflow nº 17 e nº18 estão disponíveis no site do Imaflora, trazendo análises detalhadas e estratégias práticas para a proteção das FPNDs.
(Com Elias Serejo/Imaflora)