Notícias sobre arte, cultura, turismo, gastronomia, lazer e sustentabilidade

Em aldeia Kalapalo, no Alto Xingu, abertura de estrada amplia acesso a saúde e renda, mas expõe território a não indígenas

Alto Xingu, por Kleber Patricio

FOTO: OLLIE HARDING/FLICKR.

O que é “ser indígena” e como a relação com o território também permeia transformações e mudanças no estilo de vida desses povos? Ao mesmo tempo em que recursos como uma nova estrada criam facilidades de acesso a serviços de saúde e assistência social, moradores de uma aldeia do povo indígena Kalapalo do município de Querência, no Mato Grosso, relatam temores no contato não desejados com não indígenas.  A reflexão está em artigo publicado na sexta-feira (19) na revista “Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas” pela pesquisadora Marina Novo, antropóloga e pós-doutoranda no Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O trabalho apresenta, a partir de um estudo etnográfico prolongado, os impactos da abertura de uma estrada concluída em 2018, que liga cidades não indígenas à aldeia Aiha, uma das doze aldeias do povo Kalapalo, que habita o Alto Xingu e é formado por cerca de 900 pessoas. A pesquisa é fundamentada em diversas visitas à aldeia entre 2006 e 2022, além de atas de reuniões de governança sobre a estrada realizadas entre 2017 e 2019 e contatos com os Kalapalo em outros espaços, como nas cidades ou nas redes sociais.

De acordo com Marina Novo, o trabalho embasa e ajuda a ampliar a noção de território para além da percepção física de espaços demarcados. A abertura da estrada trouxe implicações diversas e bastante variadas, como a facilidade para transporte de pacientes e entrada e saída de profissionais de saúde da região da aldeia, explica o artigo. Adicionalmente, facilitou o acesso aos benefícios sociais a que eles têm direito, como aposentadorias e Bolsa Família. Além disso, as viagens à cidade ficam muito mais rápidas e baratas, diminuindo o impacto financeiro do transporte. “Considerando que os territórios são os espaços por onde eles circulam e criam conexões mais permanentes, o que eu sugiro a partir de minha pesquisa é que essa proximidade traga uma percepção de um território expandido, em que as cidades mais próximas da aldeia são, em alguma medida, integradas ao território vivido por eles”.

Aldeia Aiha em fevereiro de 2015. Foto: Marina Novo.

Território é um conceito complexo e difere muito do conceito jurídico de Terra Indígena, por exemplo, conforme explica Novo. “Vários autores já escreveram sobre isso, mas a ideia é de que Terra Indígena, como consta na legislação, são parcelas de terra delimitadas de forma mais ou menos arbitrária, considerando os modos de vida e os usos do espaço por parte das populações ali abrangidas. O conceito de território, por outro lado, é muito mais abrangente, compreendendo o território vivido e as relações estabelecidas com os diversos seres que habitam esse território, sejam eles humanos ou não humanos, e pode, nesse sentido, fazer referência a um espaço muito mais amplo do que a terra demarcada, como é minha sugestão, no caso dos Kalapalo”.

Apesar de vantagens, essa conexão com o ambiente não indígena também trouxe repercussões negativas. O trabalho aponta que a estrada aumentou significativamente a entrada de turistas (especialmente de pesca) que nem sempre têm autorização para permanência em território indígena. Segundo informações dos agentes de saúde, também aumentou a incidência de gripes e outras viroses gastrointestinais, especialmente entre as crianças. Embora desejosos de contatos com outros territórios e modos de vida, os Kalapalo buscam assegurar uma noção de “boa distância” do mundo não indígena, ressalta o artigo.

As questões levantadas pelo estudo podem contribuir para a elaboração de políticas públicas que levem em consideração a diversidade dos povos indígenas e as especificidades de suas relações com o dinheiro, os bens industrializados e com seus territórios. “A correlação dos povos indígenas com a terra é intrínseca aos seus modos de vida. Ao mesmo tempo, quando se propõe políticas públicas que sejam universais, muitas vezes as especificidades dos povos indígenas não são respeitadas e o que era para ser a garantia de um direito constitucional se transforma em uma violação de outro direito constitucional, que é o direito à diferença. Assim, pesquisas como essa podem contribuir para que cada vez mais essas especificidades e diversidades sejam olhadas e consideradas pelos gestores e tomadores de decisão”, pontua Marina Novo.

(Fonte: Agência Bori)