Um levantamento que ouviu mais de 250 autoras, cantoras, produtoras, intérpretes e profissionais do setor da música do Brasil ilustra a gravidade da discriminação e do assédio na indústria. A edição 2023 do relatório do Por Elas Que Fazem a Música – uma iniciativa da União Brasileira de Compositores (UBC) – revela dificuldades e experiências pessoais de mulheres dispostas a contar em detalhes a realidade de um meio que é silenciosamente hostil a elas. Prova disso é que 85% afirmaram ter sofrido discriminação de gênero em algum momento da sua carreira. Muitas deixaram depoimentos sobre pequenos e grandes embaraços ligados ao simples fato de serem mulheres – e você poderá ler alguns deles no final deste texto.
Outro dado alarmante é o de vítimas de assédio na indústria musical. 76% das participantes contaram já terem sofrido algum tipo de assédio no meio. Entre os dias 16 e 29 de março de 2023, 256 mulheres responderam ao levantamento, disponibilizado nas redes sociais da UBC por meio de um formulário digital.
“A UBC apresenta um relatório de grande importância para o mercado fonográfico, que vai além e é também um retrato da sociedade. Um olhar profundo sobre a realidade da profissional mulher, musicistas, compositoras, intérpretes e produtoras neste lugar. Os dados e os relatos mostram o quanto ainda estamos, como mulheres, sendo vistas e tratadas erroneamente. O relatório é mais um importante passo a ser dado rumo a um futuro mais justo para todas as mulheres do mercado. É preciso, precioso, esclarecedor, inteligente, impactante e empoderador. A UBC tem o compromisso e segue acreditando na inclusão, diversidade e principalmente no respeito entre todos, entre profissionais e no protagonismo feminino, em busca de equilíbrio e equidade”, afirma Paula Lima, autora, cantora e presidente da UBC.
Seguindo as classificações do IBGE, a maioria das participantes da pesquisa se identificou como branca (67%), seguidas de pardas (18%) e pretas (13%). Participaram também mulheres indígenas (1,5%) e amarelas (0,5%).
Como se trata de uma pesquisa respondida por iniciativa própria das profissionais, sem que tenham sido aplicados critérios científicos de representação geográfica, etária ou étnica na seleção das participantes, os resultados devem ser lidos como um retrato desse universo específico, o das respondentes. Mas a experiência empírica revela que, em muitos aspectos, elas podem perfeitamente refletir, com mais ou menos precisão, o conjunto das mulheres no mercado musical brasileiro.
A maioria das respondentes tem entre 31 e 40 anos (36%), seguidas de um número também expressivo de mulheres na faixa entre 41 e 50 anos (24%). As idosas foram minoria, representando 2% apenas, e nenhuma menor de idade respondeu à pesquisa.
A maior parte das respondentes é solteira (51%) e a grande maioria (63%) não tem filhos, o que lança alguma luz sobre a dicotomia entre poder dedicar-se à carreira ou formar uma família, frequentemente imposta às mulheres não só no meio musical, mas no mercado como um todo.
O levantamento aponta, entretanto, que há avanços relacionados à aceitação da diversidade de gênero. Quase a totalidade das respostas vieram de mulheres cisgênero, sendo a maioria delas heterossexuais (65%), seguidas de bissexuais (21%) e homossexuais (10%). As mulheres transgênero representaram 2% das respostas, sendo 1,5% delas bissexuais e 0,5% heterossexuais.
Com iniciativas como a pesquisa e o relatório anual Por Elas Que Fazem a Música, a UBC pretende ressaltar a necessidade urgente de equiparação de direitos, condições de trabalho e rendimentos entre homens e mulheres no mercado musical, algo que beneficiaria toda a cadeia produtiva.
“Março, o ‘mês da mulher’, acabou, mas o debate deve ser fomentado o ano inteiro. Temos acompanhado casos recentes de discriminação e assédio na indústria do entretenimento e essa análise mostra que no mercado musical não é diferente. Recebemos relatos fortes de mulheres igualmente fortes que participaram da pesquisa. Transformar essa dor em dados, nos mostra a urgência de debatermos novos modelos de pensamentos e relações”, ressalta Mila Ventura, gerente de comunicação da UBC e coordenadora do projeto.
A pesquisa está disponível na íntegra no site da UBC.
DEPOIMENTOS
As informações mostradas neste levantamento foram obtidas por meio das respostas de 256 mulheres a um formulário digital, disponibilizado nas redes da UBC durante o período de 16 a 29 de março. Todos os depoimentos abaixo tiveram sua divulgação autorizada por suas autoras, de forma anônima ou não.
“O cara me chamou pra cantar em um evento super importante e depois de eu ser confirmada ele começou a dar em cima de mim. Porém eu não dei bola e quando chegou o dia do evento ele tirou minha participação. Mc’s que me chamaram para feat e quando perceberam que eu não iria ficar com eles desistiram”. Isabella Letícia Bom Soares
“Já passei por todo tipo de assédio e situações desagradáveis. Aos 13 eu já trabalhava como cantora. E sofri um estupro viajando a trabalho. Realmente já passei por muita coisa. Desde ‘brincadeiras’ inconvenientes, tentativas de contato físico à força, até propostas do tipo ‘eu te ajudo você me ajuda’ – tratando-se de favores sexuais em troca de patrocínio. Comecei a trabalhar com 9 anos de idade e acreditem, homens adultos me assediavam mesmo eu sendo pequena, magrinha e criança. Não foi fácil. Mas tô aqui, na luta, com a esperança de que as jovens cantoras de hoje e do futuro sejam respeitadas, protegidas e possam trilhar seus caminhos com liberdade e respeito acima de tudo”. Mel Maia (Melissa da Maia Koslouski)
“Já cheguei ao ponto de bloquear homens que acham que podem tudo. Pessoalmente em shows passados, já ouvi de donos de bares e casas de Show que o cachê seria maior caso usasse menos roupa ou se rolasse um after party particular. Por esse e outros motivos desisti de tocar ao vivo e acabei focando no trabalho online. Pelo menos bloquear o ser inconveniente dá um pouco de paz”. Fabiana Bellentani Cabral de Oliveira
“Precisava de um estúdio para começar a gravar minhas composições e não tinha contato algum com alguém do meio artístico; um rapaz do Facebook viu o meu cover na internet e decidiu ceder o espaço de um estúdio sertanejo para gravar minhas composições. Ele me convidou um dia antes da minha ida a ir para uma festa e durante a conversa ele soltou sem querer que a intenção era ter relações sexuais comigo como forma de pagamento pelas horas que eu teria gravando as minhas músicas no estúdio”. Autora pediu para manter relato no anonimato
“De tantas discriminações que já sofri, a que mais me marcou e quase me fez desistir desse mercado foi quando, em uma live de um renomado produtor musical, que inclusive já trabalhou com os Racionais, eu me ofereci pra uma vaga de estágio e ele respondeu prontamente que estava procurando um estagiário e não uma namorada. É assim que somos vistas”. Fabiana Bellentani Cabral de Oliveira
“Toco com uma banda composta apenas por mulheres e, no último festival que eu toquei, fui totalmente desrespeitada pela equipe de som e palco; não nos permitiram nossa passagem de som conforme o combinado, nos trataram o tempo todo como se não soubéssemos o que estávamos fazendo e, no final de tudo, cortaram a minha última música comigo ainda em cima do palco”. Autora pediu para manter relato no anonimato
“Sou uma mulher negra e empresária, mas sou constantemente confundida com dançarina ou familiares dos artistas que represento”. Ana Paula Paulino
“Uma vez subi no palco para tocar (sou DJ) e, mesmo estando com meus aparatos em mãos, fui bruscamente puxada pelo braço pelo dono do club, pois ele achou que eu era uma frequentadora que estava invadindo a cabine para tietar o artista anterior a mim”. Rafaella De Vuono.
(Fonte: Lupa Comunicação)