Mestre em Educação e consultora educacional, a professora Carla Jarlicht defende que o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19 seja aproveitado para a construção de memórias afetivas entre pais e filhos. E que ler e brincar são caminhos essenciais para essa conexão.
Carla, que no próximo dia 19, ministrará na Casa do Saber Rio (rj.casadosaber.com.br) o curso online Ler e brincar: como potencializar a ludicidade nas crianças, diz que a pandemia deve ser abordada com os pequenos “com respeito, transparência e bom senso”. “A criança está vendo que há algo diferente ocorrendo. Ela não é tola”, acrescenta.
Confira a entrevista a seguir
Assim como com qualquer tema delicado, com respeito, transparência e bom senso. Respeito, no sentido de ter clareza de que a criança é um ser capaz, sensível e que pode compreender o que se passa ao seu redor. Transparência porque é preciso honestidade ao lidar com as pessoas. Se há uma pandemia e esse é um estado de incertezas e de muita cautela não podemos fingir que nada está acontecendo, até porque a criança está vendo que há algo diferente ocorrendo, ela não é tola.
A internet faz parte da rotina das crianças, até mesmo das menores. Muitas ficam horas diante da tela do computador e assim leem, brincam e se divertem. O que há de positivo e negativo nessa ferramenta?
A internet faz parte da vida de todos. E esse é um caminho sem volta. Por isso, é preciso estabelecer uma rotina balanceada, gerindo melhor esse tempo das crianças em frente às telas – todas elas. O recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria é que crianças até dois anos de idade, por exemplo, não sejam expostas às telas em geral (TV, tablets, celulares) e que as maiores tenham um tempo de até 2 horas em frente às mesmas. Isso porque a exposição excessiva é nociva para o corpo e para a mente. Portanto, precisamos aderir ao máximo a essas recomendações. É claro que a internet oferece um sem número de possibilidades de leituras, vídeos e joguinhos, muitos deles de qualidade, que respeitam o universo da criança. Mas, mesmo assim, é importante lembrar que a internet é como uma rua extremamente movimentada e imprevisível. Da mesma forma que não convém deixar uma criança andar desacompanhada na rua, não convém deixá-la sozinha na internet ou diante de qualquer outra mídia – menos ainda por tempo indeterminado. É também imprescindível termos clareza de que a criança precisa de interação para se desenvolver de forma plena e saudável. Interação ativa, com o outro (seus pais, cuidadores e amigos), consigo mesma e com o mundo externo, o mundo real. É nessa interação que ela explora a complexidade do mundo e vai construindo o seu mundo simbólico. É nessa relação com o outro, com todos os desafios e delicadezas que possa haver, que a criança se faz sujeito, compreendendo o que a cerca. Esse tipo de interação não há como encontrar na internet nem em nenhuma outra mídia.
Outro aspecto que precisamos considerar na rotina das crianças e que é estruturante é o não fazer nada. O ócio. Já repararam como estamos sempre preocupados em ocupar o tempo da criança com milhares de tarefas? Nem nos damos conta do quanto é importante também as crianças não fazerem “nada”. Porque justamente é esse nada que faz com que a criança mergulhe no seu processo de criatividade interno. Esse “não fazer nada”, assim como o brincar, são restauradores do mundo interno. Portanto, se não temos mais como evitar totalmente essa exposição às telas e elas já estão incorporadas à rotina, precisamos dosar e acompanhar o que a meninada vem assistindo – mais do que isso, dialogar, explicar e oferecer alternativas. Brincar, ler e interagir mais, ao vivo e a cores. Reservar um tempo para essa partilha, construir memórias afetivas, é o melhor que os adultos podem oferecer às crianças.
O contato com livros de papel ainda tem alguma relevância para as crianças?
Desde que a tecnologia foi ocupando cada vez mais espaço em nossas vidas, passamos a questionar a serventia de tudo que veio antes dela. Os livros fizeram parte desse questionamento. Mas o tempo foi nos mostrando que sim, há ainda espaço para o livro, que segue firme e forte, sobretudo na vida das crianças. Isso porque elas precisam dessa experiência, pois conhecem o mundo assim, sentindo, comendo pelas beiradas (ou se lambuzando mesmo), através do toque, do cheiro, e a cada virada de página vão adentrando na história a partir daquele suporte. Hoje existem também livros-objeto que proporcionam ainda outro tipo de experiência, surpreendendo o leitor com seus projetos gráficos, ampliando a leitura. Há uma autora tcheca, Kveta Pacovska, que diz que o livro ilustrado é a primeira galeria de artes que uma criança visita. E é bem isso. O livro de qualidade proporciona essa experiência estética, que é essencial à formação do leitor. E poder tê-lo em mãos, manuseá-lo, proporciona outro tipo de experiência, uma apropriação singular da narrativa. Ao invés de pensar na troca do livro físico pelo digital, acho mais interessante poder oferecer à criança uma variedade de opções tanto de narrativa quanto de suporte, porque é nessa pluralidade de experiências que ela vai tomando gosto pela leitura, vai se descobrindo leitora.
Entre brincar e ler com os filhos, o que os pais devem priorizar?
Não é preciso escolher. Eu diria os dois. E diria mais: o que os pais devem priorizar é o tempo de estar verdadeiramente com os filhos. Inteiros, interessados. Sem distratores. Estar conectado com o filho/a é ter a chance de conhecê-lo melhor, de partilhar experiências e construir memórias afetivas. E nesse caminho, o brincar e a leitura são atividades extremamente convidativas e essenciais. Tanto uma quanto a outra permitem essa aproximação, esse aconchego, esse encontro de mundos e de afinidades. O brincar é condição de ser criança; é assim que ela lida e organiza seus conteúdos afetivos e vai entendendo melhor o mundo que a cerca. A leitura é, em boa medida, um brincar com a imaginação, possibilitando ainda mais uma ampliação de mundo pelo sem-fim de narrativas que traz. É possível também unir essas atividades, o que é sensacional. O mais importante é entender que elas são essenciais na vida das crianças e, portanto, tê-las como prioridade na rotina é o melhor presente que poderia se dar a uma criança. Aliás, esse é um presente de mão dupla.
Qual a importância de falar de fadas, princesas e heróis neste momento tão cinza, com o novo coronavírus assombrando a humanidade?
Falar de princesas, fadas, príncipes e heróis é sempre muito importante; tão importante quanto falar das bruxas, monstros e dragões. Isso sempre e, ainda mais, em momentos como o atual. Explico: a literatura para crianças nos brinda com todo tipo de narrativas e, quanto mais pudermos explorar essa pluralidade, melhor. Geralmente as boas narrativas trazem conteúdos humanos complexos de uma maneira delicada, poética, inusitada. Algumas vezes de forma divertida; outras, de forma absurda, triste, assustadora e até repugnante. O caso é que precisamos dessas histórias porque são elas que provocam questionamentos acerca dos nossos conflitos ao articularmos a narrativa com nossas próprias emoções. A leitura ecoa dentro da gente. E gente, de todo tamanho, precisa da fantasia para dar conta da realidade. “A arte existe porque a vida não basta”, já dizia Ferreira Gullar. É isso que nos ajuda a lidar melhor com nossos próprios sentimentos e a encontrar saídas nos labirintos da vida. Portanto, pode-se dizer que é encarando o monstro ou a bruxa das narrativas que ficamos mais prontos para encarar os monstros e bruxas que estão aqui fora. Nesse sentido, posso dizer que a leitura modula o estresse, apazigua e fortalece.
Vivemos tempos difíceis. Como tratar o tema pandemia sem causar traumas em nossas crianças?
Assim como com qualquer tema delicado, com respeito, transparência e bom senso. Respeito, no sentido de ter clareza de que a criança é um ser capaz, sensível e que pode compreender o que se passa ao seu redor. Transparência, porque é preciso honestidade ao lidar com as pessoas. Se há uma pandemia e esse é um estado de incertezas e de muita cautela, não podemos fingir que nada está acontecendo, até porque a criança está vendo que há algo diferente ocorrendo; ela não é tola. E bom senso, porque vamos ter que encontrar uma maneira de falar de modo que a criança entenda e se sinta segura de alguma forma. É o adulto que vai poder transmitir essa segurança. Portanto, o adulto precisa manter a calma e entender que esse período, apesar de ser trágico, é provisório. Informar-se junto às organizações de saúde e, se preciso, pedir ajuda aos profissionais da escola do seu filho ou filha na condução dessa conversa são atitudes que dão mais segurança.
Algo que também ajuda muito as crianças a entenderem é falar de forma simples e através de exemplos; isto é, exemplificar a situação usando uma situação semelhante que ela já tenha vivido favorece o entendimento da criança. E ainda responder do tamanho da pergunta, considerando a sua idade e maturidade, para não gerar nela ainda mais incertezas.
Outro ponto valioso e que pode fortalecer a todos, não apenas às crianças, é focar no copo meio cheio desse momento – direcionar o olhar para o que há de ganho nas pequenas coisas boas do dia, como a oportunidade da família passar mais tempo junto, compartilhando os momentos do dia, divertindo-se entre outras coisas é encorajador. Precisamos valorizar isso, ou melhor, aprender isso com as crianças para poder passar pela dificuldade menos fragilizado.
Por último, ouçam as crianças, validem o que elas dizem estar sentindo. O medo, a raiva, a agitação exagerada, a tristeza, os receios – tudo é legítimo. Acolham. Aconcheguem-se, perguntem, estejam perto, observem. Esse contorno afetivo é essencial para que as crianças entendam que os pais estarão ali junto delas, para o que der e vier.
Escolas fechadas, crianças sem conviver com outras… Brincadeiras e leitura em casa substituem brincadeiras e leitura na escola ou no parquinho?
Nada substitui a presença. E isso não tem idade. No caso das crianças, estar no seu espaço escolar, junto com seus amigos e professores, é precioso. E as crianças precisam disso para crescerem saudáveis, para se desenvolverem bem, para serem mais felizes. Com certeza, muitas estão saudosas desse contato e é nesse momento que a tecnologia vem ajudando a estreitar as distâncias.
Aproveito para reafirmar veementemente que crianças precisam brincar, precisam ler. Tanto dentro quanto fora de casa – e por fora de casa falo em contato com a natureza, não dentro de shoppings. E isso não é por hoje, é sempre. É preciso que os adultos entendam, de uma vez por todas, que essas são atividades vitais para toda e qualquer criança. O que ela aprende ao brincar e ao ler, nas relações com os amigos e no contato com a natureza são aprendizagens de valor inestimável e que ela levará para a sua vida. Criança que brinca livremente e que lê é uma criança mais empática, generosa, criativa, resiliente. Afinal, não são essas as habilidades que pensamos ser essenciais na sua formação? Deixem que brinquem. Chega de ocupar seu tempo precioso com mais uma aula disso ou daquilo. O tempo de brincar é agora e ele passa voando.
Com o novo coronavírus, as rotinas familiares mudaram drasticamente, com pais e filhos juntos o tempo todo. Qual a melhor forma para aproveitar esse convívio sem causar estresse?
Por mais óbvia que possa parecer essa resposta, vou arriscar: a própria rotina – mas não a rotina anterior. Porque aquela atendia a uma determinada demanda. A situação agora é outra. Portanto, organizar em conjunto (isso mesmo: coletivamente) a nova rotina pode ser um bom passo para atravessar a nova situação de maneira menos estressante. É preciso que a família se reúna, avalie as necessidades atuais, converse sobre suas atividades, combine o que fará individualmente e em grupo, quais os espaços da casa que estarão ocupados etc. etc. Tudo isso incluindo as crianças; afinal, elas têm voz, precisam ser ouvidas e consideradas. Vale pensar em quais momentos as crianças da casa vão precisar de orientação e ajuda dos adultos e se planejar para esses estarem presentes. Encorajar os filhos a brincar livremente, sozinhos, a realizar as tarefas possíveis com autonomia crescente e elogiar o seu esforço e suas conquistas. Reservar um momento para a família fazer algo junto pode ser divertido. Pode ser fazer a comida, lanchar, jogar um jogo, assistir filmes, ler… Aproveitar para resgatar esses momentos que são tão ricos e essenciais ao bem-estar. E, à medida que a nova rotina for funcionando, é possível avaliar, resolver os desentendimentos, ajustar, reformular. Cada família vai encontrar o seu jeito. Sem rigidez. O momento nos pede flexibilidade e generosidade.